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in 2010 with funding from

University of Toronto

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José Queiroz 1P

DA MINHA TERRA:

Figuras Gradas

IMPRESSÕES DE ARTE

IllustraçÕes

DE

ROQUE GAMEIRO E SANTOS SILVA

IJSBOA

Imprensa Libanio da Silva

2f), Rua das Gáveas, 3i

1909

DA MINHA TERRA:

Figuras Gradas

IMPRESSÕES DE ARTE

Do presente livro foram tirados cincoenta exemplares es- peciaes, em papel de Hollanda, numerados e rubricados pelo auctor, que serão vendidos pelo preço de cinco mil réis, tendo preferencia as pessoas que ficaram com os correspondentes exemplares da Cerâmica Portugueza.

Reservados os direitos de propriedade litteraria e artística.

José QUEIROZ

DA MINHA TERRA:

Figuras Gradas

IMPRESSÕES DE ARTE

IllustraçÕes

DE

ROQUE GAMEIRO E SANTOS SILVA

LISBOA

Imprensa Lif^anio da Silva

2r), Rua das Gáveas, 3i

1909

Do MESMO AUCTOR

Cerâmica Portugueza Primeira publicação neste género em lingua portugueza. Recebida com louvor pela critica do paiz e do estrangeiro. Um volume de 463 paginas, in-folio, so- bre satiné especial, com mais de 240 illustraçÕes no texto e 249 marcas das louças, antigas e modernas, portuguezas, na maior parte inéditas. Titulos dos capitulos :

A cerâmica em Portugal (esboço histórico). Caracter geral da cerâmica. Influencia das formas romanas e da olaria ára- be. Manifestações artísticas em Portugal. A cerâmica portu- guesa anterior ao século XVlll. A influencia oriental. O sé- culo XVII I. Typos decorativos. ^5 fabr.cas (notas e docu- mentos). Lisboa e seu districto. Caldas da Rainha, Juncal, Alcobaça. Aveiro e seu districto. A porcelana. A fabrica da Vista Alegre. Alemtejo e Algarve. Vianna do Castello e seu districto. Ilhas adjacentes. Azulejos. Esculptores-barris- tas. Tijolo. Diccionario demarcas. Introducçao. Louças de estimação. Conselhos aos colleccionadores. Collecções existen- tes no pai^. Generalidades sobre as marcas. Marcas e mono- grammas. Algarismos e datas. Marcas figurativas. Diccio- nario de ceramistas, profissionaes e amadores.

PREFACIO

NESTE livrinho encontrarão os leitores, antes d'alguma coisa sobre as artes applicadas, impressões varias, e perfis, a largos traços, de pessoas gradas, cujo valor litterario é fundamentalmente artístico ar- tistas, portanto, que, na nossa terra, devem ter um logar á parte.

Sob a mesma impressão, tenciono tratar de outras figuras litterarias, de artistas que em absoluto se occupam das artes plásticas, e, ainda, de outras individualidades que, pelo seu elevado préstimo, têem engrandecido o nosso paiz. Fica para subsequentes volumes a continuação da tarefa.

DA MINHA TERRA:

Figuras Gradas

IMPRESSÕES DE ARTE

/Àn^'.

Joaquim de Vasgoncellos

Carolina Michaélis DE Vasgoncellos

. ^rjí': EvORA ^'..

NUMA noite fria de fevereiro de 901, aguardava eu na estação de Évora a chegada de Joa- quim de Vasconcellos e de sua mulher, D. Carolina Michaélis de Vasconcellos. A minha pessoa partira de Lisboa vinte e quatro horas antes, a marcar alojamento para os illustres escriptores, que a ci- dade eborense ia receber com orgulho. Sim! Évora devia orgulhar-se de os receber na sua inti- midade.

Os monumentos, até então, não haviam de certo franqueado o seu culto, a sua arte e as suas sum- ptuosidades a sabedores mais grados, como nunca teriam sido vistos e encarecidos por seres mais distinctos do que esses que iam chegar unidos

■pelos laços matrimoniaes, pelo affecto e pelo grande valor intellectual, que reciprocamente muito consi- deram.

Subitamente, fui abraçado por um amigo Au- gusto Ennes que exclamatoriamente me dirigiu estas plausíveis interrogações :

Você em Évora!? Que faz aqui!? E' singu- larissimo !

Respondi, e pedi-lhe desculpa de lhe não ter ba- tido ao ferrolho ...

Ah! bem sei: do Porto. São dois eruditos!

Sim, meu amigo, duas almas que têem pas- sado a vida a engrandecer o nosso torrão !

Perfeitamente, perfeitamente! Elle é quem mais subsídios tem dado para a historia da arte e das industrias em Portugal, e ella tem contribuído grandemente para a historia das bellas-lettras, da poesia, desde os Cancioneiros até de Miranda !

Tudo isso, e os seus auctores vão entrar em Évora, nesta noite de inverno, sem foguetes, sem philarmonicas, sem vivas berrantes e sem discur- sos forçados e vexatórios, simplesmente, unica- mente recebidos pelo mais humilde dos seus ami- gos, para lhes dizer que os esperam um aposento mo- desto, um caldo asseado e uma cidade encantadora!

Mas elle não é a primeira vez que vem a Évora . . .

De certo. A senhora é que pela primeira vez a visita.

Quem me fallava muito d'elles, quando aqui vivia, era Gabriel Pereira, homem singularissimo a quem Évora muito deve !

Certamente ! Devemos exaltar o seu nome, quando o pronunciamos !

Instantes depois, o silvo estridente da locomo- tiva avisava de longe o pessoal, a postos na ^are, e, poucos minutos passados, assomava na curva, como sol que desponta, a luz reflectida e multipli- cada pela aureola "metallica do farol, que, á ma- neira que se acercava, diminuía de intensidade, emquanto a machina augmentava de volume.

Automaticamente, a anciã da locomotiva parou ; corri para a carruagem, d'onde Joaquim de Vas- concellos vinha mostrando o busto, enquadrado no caixilho da portinhola ; dei-lhes as boas vindas e ajudei a descer a Senhora, que declarou vir encan- tada com o caracter da região ! Depois, peguei numa das valises, indiquei a sahida, e, em ca- laça tirada por muares, deixámos a estação e se- guimos, com pressa, até ao Hotel Annes, onde o caldo reparador esperava os viajantes.

A' mesa, trocaram-se impressões sobre a paisa- gem alemtejana, recordaram-se factos históricos da velha cidade resgatada aos sarracenos por Geraldo

sem pavor, Sertório, a torre dos Coelheiros, os Co- gominhos, etc.

Quando se deram as boas noites, o relógio batia meia hora depois das onze.

Ao outro dia, bem cedo, quando eu esperava por Joaquim de Vasconcellos, o meu erudito amigo não estava no hotel.

Sahi, e, á porta, o criado, que limpava o calçado dos hospedes, deu-me os bons dias e o recado do Senhor do i8 e perguntou-me se dormira bem.

Isso sim! Toda a noite a sonhar com Santiago!

Pois bem, contestou o toca-extreinos.

Fui encontrar Vasconcellos em S. Francisco, ás oito da manhã, com o seu caderno de notas, o seu lápis, o seu metro e o seu binóculo.

Começaram por este templo que tem sobre as portas de entrada, abrigadas pela galilé, o pelicano de D. João II e a esphera armilar de D. Manuel a peregrinação admirativa e estudiosa, que durou desde esse sabbado, 9, até i5 do segundo mez do nosso anno, dia em que os meus amigos partiram no comboio da noite para Estremoz e Villa Viçosa.

D'aquella egreja, que foi principiada e concluída, respectivamente, por aquelles monarchas, deu-se uma saltada a Santo Antão, cuja fabrica deve ter tido começo segundo se diz no fim do sé- culo XII.

Depois d'este petit-dejeiíner archite- ctural, corremos á verdade dos factos^ que os nossos estômagos reclamavam, pois, como é sabido, é orgao que não digere pedras nem reliquias, e áquella hora trabalhavam inanes, desprovidos de material.

Ao almoço, contei o meu sonho, que eu vira desfilar nas paredes caiadas do meu quarto :

Cavalleiros com seus arnezes reluzentes, mon- tados á gineta, com as puas ensanguentadas dos acicates e dos martelletes ; mãos cobertas por viei- ras imbricadas, na dextra a lança, na esquerda firme a rédea, e um que outro no braço de defesa o lampejante escudo com as quinas portu- guezas.

Os cavallos relinchavam, de venta aberta, brace- jando soberbamente, num passo garboso e caden-

ciado, parecendo querer fazer luzir mais vistosa- mente os vencedores, cujas cabeças ostentavam elmos com paquifes, de viseiras levantadas, sob os quaes brilhavam os olhos de Aífonso Henriques, de Geraldo, de Cogominho e de Sancho II !

Após estes, outros ginetes, com peitos d'aço, cotas imbricadas, anneladas e d'outras malhas me- dievaes, mostravam categoria.

Na cauda, uma alluvião de peões marchando trium- phantemente, com as cabeças defendidas por cha- péus de ferro, cervilheiras e almafres ; ao hombro, lanças, clavas, martellos, maças, partazanas, achas e, nos braços, resistentes broqueis.

Seguiam-nos besteiros de cavallo, de garrucha e de conto.

No meio d'est'ultimo troço d'almogavares de cor- reria, servidores, cavallos resfolegantes, com as sel- las nuas, fazendo telintar as ferragens, pendentes das bridas, dos arções, das retrancas, os estribos emais peças dos jaezes ; bandeiras verdes, farpadas, com crescentes d'oiro quente, e, bem alto, para que se vissem, duas cabeças, espetadas em farpões, de moiro e de moira !

Nas ph3^sionomias, nos olhos scintillantes do sa- gaz cabo de guerra e da vencedora peonagem, lia-se gloria, não tanto de vencer homens como de fazer reviver crenças !

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De todo esse tropel de gente e de corcéis o echo batia na muralha romana da cidade, subia no es- paço, acompanhado pelo pyrilampar dos metaes, tocados de sol. Pairava o eífeito, e o som reper- cutia-se na planície, para alem dos muros, num de- crescendo chromatico, até se extinguir no horizonte!

Bravo! Para sonhar assim, seria melhor viver dormindo disse, com affabilidade, a auctora da monumental obra sobre o de Miranda.

O que não me explico, minha Senhora, é a razão por que toda esta sonhadora visão se não pas- sava aos meus fechados olhos somente em Évora. Tão depressa estava aqui como em outros pon- tos do Alemtejo, no Algarve e em Guimarães ! E extraordinária persistência ! continuamente via em movimento, cavallo e cavalleiro brancos, muito brancos, na abobadilha branca do meu quarto o famigerado Santiago. Que viria aqui fazer o apos- tolo gallego ?

Joaquim de Vasconcellos, que ingeria com ape- tite uma fritada de ovos com chouriço, atalhou :

Ideias associadas, meu amigo.

Sim, ideias associadas; repetiu a Senhora ama- velmente, e proseguiu :

Ninguém sonha com coisas que não tenha visto ou lido... Se não tivesse estado na mo- numental Compostela, onde, sobre o tympano da

IO

fachada do Consistório, se exhibe a estatua eques- tre do Apostolo, que os gallegos quasi todos os annos, pelas festas de julho, branqueam a tinta, para que o lendário guerreiro resplandeça mais intensamente aos olhos dos christaos, sob o sol da Hespanha, não teria visto agora aqui, em Évora e no tecto do seu quarto, o notável mata- moiros, que, segundo a lenda, appareceu em visão aos hespanhoes na batalha de Cavite. Ainda pela mesma associação de ideias e pontos de affinidade que ha na symbolisação do padroeiro compostelano e de Geraldo se?7i pavor nas armas d'esta cidade, se explica a persistência do santo cavalleiro na alcova do Hotel Annes.

Aqui interviu, ao concluir uma nota sublinhada no seu livro de apontamentos, o auctor do Fran- cisco de Hollanda^ ajudando a recompor nitida- mente o quadro histórico que o meu tumultuoso sonho esboçara :

As correrias a Guimarães disse elle, fechando o livrinho justificam-se pela estatua, que você alli viu, do fundador da nossa monarchia, que começou por derrotar moiros, magistralmente posta de pelo genial Soares dos Reis. O que minha mulher acabou de dizer é assim : ninguém sonha com coi- sas que ignora completamente. Se quizesse dar- se a um pouco de trabalho, coordenaria facilmente.

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em sequencia histórica, tudo quanto baralhou dor- mindo mal, e veria que os outros pontos do Alem- tejo e do Algarve, por onde divagou a noite pas- sada, são seus conhecidos. . .

Depois do almoço, subiu-se a Sellaria, em direi- tura á Sé, e, nesse pequeno trajecto, não houve um est}'lo architectonico, um resalto de parede, um sgrajilto, um papagaio de sacada, um ferrolho de porta, que não fosse julgado dentro da sua epocha, segundo a sua utilidade e o seu valor artístico.

Quando, timidamente, eu adiantava alguma lem- brança, em que julgava dar alguma novidade, tinha invariavelmente esta resposta : «Ah! sim; é muito interessante» ; e o objecto era descripto com minuciosidade! Assim me succedeu ao citar a data de um sgrajitto 1673 no friso d'uma janella, alli bem perto, que eu desenhara no meu álbum.

Desde o pórtico da velha Metropolitana, cuja fundação, _

no século xii, se attribue ao -Ss^ Bispo D. Payo, até á capella do Esporão, delicadamente trabalhada em mármore branco e datada de 1529, e ao coro, esculpido em madeira, no estylo da Renascença, no anno de i562, tudo foi visto, em conjuncto e no detalhe, sob uma analyse desconvencionada, segura na retrospectivi-

dade histórica, aprecian- do-se devidamente a con- cepção, a mão d'obra, e, se sim ou não, segundo a matéria prima, o lavor ^~^i í*^<:^' e a luz, tudo estava abso-

-| 1] lutamente d'accordo. E ahi ficava, completa, a critica de uma obra, o conhecimento das noções genéricas das coisas, phi- losophicamente vistas e sentidas, como sentida alli estava toda a sciencia das sensações, como se fora um extracto de raros e aromáticos perfumes !

E assim a metaphysica e a esthetica supplantavam, com a visitação d'esses dois seres mais do que cul- tos, o culto divino do magestoso templo sagrado. Bem differentemente considerava eu, como se passasse das trevas para um foco intenso de luz pura, que me envolvesse a cabeça, como um resplendor; bem differente era, para mim, a concepção humana e o labor das creaturas, que eu nunca tinha sentido e visto tão enormemente! A grandeza do edifício multipli- cava-se, a sua expressão vivia com r\

novos effeitos, cores desconhecidas, -í..

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nuaiices delicadas, como as vitragens ' .1

nunca haviam projectado nas lages

i3

pavimentaes. E toda essa sensação, que jamais havia experimentado, em tantas vezes que a minha cabeça descoberta passara por baixo d'aquella abobada sa- crosanta, eu a devia agora á exposição despretenciosa de dois espirites privilegiados, e, se não ajoelhei a seus pés, agradecendo- Ihes tamanha gra- ça, foi porque nem tudo é permittido á sinceridade dos homens . . . Quando deixámos o templo români- co para

admirarmos o templo de Diana eu, que imagi- nava saber alguma coisa do que Évora possuia de bello considerei-me um ignorante chapado, e, ante as columnas canneladas do templo romano, pude dar uma noticia inédita : algumas pontas dos capiteis corinthios foram partidas pelo raio que, numa noite tempestuosa, visitou Évora ! E por aqui me deixei ficar com toda a minha erudição, com o pro- pósito de não fallar mais de historia, de archeolo- gia artistica e de sensações transcendentes, e ou- vir, ouvir e ouvir. .

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Nestas preciosas ruínas, esteve muitos annos até 1870 installado o açougue! Subitamente, sahiu do grupo esta allusao:

Seriam aqui abatidas as novilhas que puxaram o carro da filha de Júpiter ?• . .

Ainda nessa mesma tarde se visitaram os restos do convento do Paraiso, em demolição, onde do- minava o estylo da Renascença. A capella de D. Álvaro da Costa, fundador da Misericórdia de Lis- boa, trabalho em mármore branco, com as datas do inicio e da conclusão que jogam com a tumu- lar— estava ainda de pé. Ao fundo, sobre o tumulo, um retábulo de azulejos, do principio do século xvii, representando N. S. do Rosano. Da campa, que fora violada, a inscripção é rematada pela data : i535 K

A peregrinação no dia dez de manhã foi ao Mu- seu Archeologico, installado nos baixos do Paço de D. Manuel. Entre as pedras raras, estava exposta uma imagem a Annunciação do século xiv, muito notável e em perfeito estado de conservação. A seguir, uma rápida vista d'olhos aos restos da egreja da Graça, onde encontrámos n'uma cartoií- che, entre os lavores ornamentaes do mármore, a data 1537.

* A capella está actualmente no Museu da Bibliotheca.

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Desde o almoço ao toque da sineta para a grande refeição, boas cinco horas de trabalho foram dedi- cadas aos apontamentos minuciosos de seis esplen- didos pannos da Flandres, tecidos a e seda, que o seu possuidor, o Senhor Francisco de Barahona Fragoso, nos deixou admirar.

Joaquim de Vasconcellos, a quem algumas vezes eu escrevera exaltando o valor de tão extraordiná- ria collecção de pannos do século xv, dizia -me nessa manhã :

Tenho visto as melhores tapeçarias que se guardam na Hespanha, na França, na Itália, na Allemanha e noutros paizes da Europa. Como quer você que me deslumbrem as que vamos vêr ?

Mas, agora, em frente d'ellas, o meu erudito amigo dava-me razão e confessava que nunca as havia visto mais valiosas.

Um d'esses pannos o maior que, se bem me lembro, representava o « Juizo Final», tem mais de cem figuras e mede 7 Y2 metros de largo por 3 Ya d'alto. Os outros: «Apresentação no templo», ses- senta figuras ; «O Paraiso», trinta e seis; o do «Rei David», vinte e cinco. Tenho ainda ideia da figura da vaticinadora Sybilla.

Parte do dia onze, depois de vermos os magní- ficos azulejos de S. Salvador, foi dedicado á Biblio- theca Pubhca, dia chuvoso e triste, que tenho

apontado no meu Diário como um dos mais afflicti- vos da minha vida ! Encontrava-me na sala de lei- tura e os meus companheiros no Museu, installado no pavimento térreo, inferior áquelle que eu pisava, entregue a investigações, meio aturdido pelo baby- lonico repositório de lettras que me cercava, ao mesmo tempo que elles tranquillamente decifravam enigmas pre-historicos, evidenciavam segredos das legendas mussulmanas, faziam fallar as pedras dos sarcófagos romanos e das sepulturas gothicas, e tudo sahia da quietação dos séculos, quando no objecto exposto houvesse uma forma, uma sigla, uma folha, um trecho ornamental, rude ou civili- sado !

Quando eu conseguia encontrar o movimento de uma famosa illustração quinhentista, intercalada num texto manuscripto allusivo á vida de Santa Helena, o bibliothecario, o meu amigo António Francisco Barata, que andava fazendo as honras do Archivo aos illustres visitantes, com um d'estes sor- risos que deixam na espectativa, entre a boa e a noticia, disse pausadamente :

E' você reclamado em baixo, para decidir um caso difficil, archeologico !

Como assim I?

Tal como lh'o digo. São os seus amigos que esperam a sua opinião.

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Fiz-me branco, larguei o meu álbum e, lentamente, dirigi-me para a escada, como se caminhasse para um sacrifício !

O bibliothecario desceu, como um juiz que desce da tribuna ao acabar de proferir as ultimas palavras d'uma sentença terrível, e eu detive-me, certo de que se cumpriria a condemnação, com o meu grande fiasco !

Então, fui assaltado por essa interrogação, sem- pre tardia : Para quê ? . . .

Para que tinha eu ido a Évora ? Ah ! se eu pu- desse destruir a bibliotheca, como Santa Helena destruiu o templo pagão erguido no Calvário! Para que teria D. Fr. Manuel do Cenáculo instituído esse armazém de volumes ; para que o defendeu da invasão franceza. . . e, para cumulo da minha pouca sorte, para que lhe haviam de annexar o Museu ? Era bem certo o axioma: «Debaixo dos pés se le- vantam os trabalhos»! . . .

O Duque de Bragança, julgado e decapitado naquella mesma Évora, dentro do ferragoulo negro não subira os degraus do cadafalso, quentes por esse tórrido e memorável dia de julho, tão horro- rosamente ennegrecido e angustiado, como eu ia descer aquelles de pedra fria !

Ah! mas era preciso reagir contra a minha preoc- cupação de não querer passar por ignorante, e.

sobretudo, contra o desdenhoso sorriso do meu amigo Barata, em cuja expressão li sobeja vontade de me oíferecer um copo d'agua, quando me viu mudar de côr. . .

Aturdidamente, galguei, quatro a quatro, os de- graus e entrei no Museu, ruminando evasivas...

Quando, de volta, subia a escadaria de pedra, de espinha direita e arcabouço dilatado, o meu amigo Barata, ainda com o mesmo ar sorridente, esta- lando de curiosidade, perguntou-me :

Então? Quem tinha razão ? Respondi vingativamente :

Os dois. . .

Ainda neste memorativo dia se inspeccionaram, as obras de arte do Paço Archiepiscopal, onde, sob todos os aspectos, se impõe a pintura.

O mais notável dos quadros é o dacapella a Co- roação da Virgem. Este, como outros alli existen- tes, participam da influencia do celebre pintor fla- mengo, Jean-van-Eyck, que, como é notório, veiu a Portugal retratar a Infanta D. Isabel, filha de D. João I, que, pouco depois, casou em Bruges com Filippe o Bom e foi mãe de Carlos o Teme- rário.

Nas quatro paredes de uma sala, estão colloca- dos dezenove painéis, onze maiores e oito de me- nor tamanho ; estes, conhecidos pela serie da Vir-

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gem e de factura semelhante á das nossas taboas pintadas sob aquella influencia ; e aquelles, extra- nhos a essa maneira, e representando :

Encontro de S. Joaquim e de Santa Anna, Pri- meira visita ao Templo, Casamento de S. José com Nossa Senhora, a Annunciaçáo, Nascimento de Christo, Nossa Senhora no leito, Circumcisao, Apre- sentação no Templo, Adoração dos Reis, Fuga para o Egypto, Transito de Nossa Senhora.

Na secretaria, pinturas a claro-escuro caça- das — attribuidas a António de Hollanda, illumi- nador que viveu entre nós desde 1498 até lôSy.

Nos dias seguintes, as visitas repetiram-se : A Sé, para vêr o quadro gothico que está na capella de Santa Helena, e o do claustro, que representa a Resurreição de Lazaro; á Bibliotheca, para admirar o celebre triptyco de Limoges. Alem d'isso, visita- ram-se a Egreja dos Loyos, que foi concluída no fim do século XV (? j; o Palácio Cadaval, denominado das cinco quinas, pela forma da torre que para o norte ; a Torre de Sertório ; o Espinheiro ca- pella de Garcia de Resende, com a data em que este a mandou, sob o seu risco, edificar i52o e onde está sepultado; A Egreja de S. Braz; o Arco romano ; o Aqueducto da Prata, construído pelo mestre André de Resende, assim conhecido por ter sido professor dos filhos de D. João III ;

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Manisola vivenda e bibliotheca do Visconde da Esperança, 3o.ooo volumes, illuminuras gothicas, manuscriptos e muita amabilidade do proprietário; Theatro de Garcia de Resende, decorado pelos pintores António Ramalho e J. Vaz ; Casa do Dr. Barahona quadros e mármores de artistas portu- guezes, outros objectos d'arte e um raríssimo ta- pete persa, tecido a seda, com bicharia, dois metros por um de largo (pouco mais ou menos), em que tive o prazer de pôr os meus pés e que valia a ba- gatella de vinte contos de réis.

Depois, como o dia estivesse lindissimo, pas- seou-se pela cidade, a vêr a sua industria do mo- biliário, cujos motivos, numa po- lychromia viva e risonha, exhi- bem flores e folhagens, corações trespassados por setlas, nas com- modas, nos toucadores, nas ca- deiras cem assen- g) tos de tabúa, nos catres e nos ber- ços; a vêr os fer- reiros, os cestei- ros, os esteireiros, os teares manuaes, os curtidores das Alcaçarias e as las carmiadas, os tijoleiros, os tanoeiros, a carpintaria dos carros e dos utensílios de lavoira, os borracheiros, que fazem odres e borra-

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chas ; a ver as tapeçarias de ArrayoUos e sua in- dustria de carnes ensacadas ; a vêr as doçarias e comer os doces.

A vêr, ainda, a vetusta cidade pelo seu aspecto commercial e através do seu pittoresco, a buscar im- pressões das suas praças com suas fontes, das ruas, travessas, vielas e becos com seus nomes caracteristi- cos : Largo da Porta da Moira, Rua do Alfayate da Condessa, Rua das Amas do Cardeal, Beco do Chantre, Alcarcova, Rua do Toiro, Rua das Don- zellas, Rua dos Mercadores, Rua de Alconchel, Rua de Alcoutim, Rua dos Aferrolhados, Travessa do Cavaco e outros ; a vêr transitar os homens de tez morena, com chapéus carregados aos olhos, capotes de almafega, de la churra, com cabeções e gualdra- pas, embrulhados em mantas d'Almodovar ou com samarras e ceifões de negra de ovelha, e, num que outro sitio carros de canudo, tirados por muares com xairéis pintados e cabeçadas de las gar- ridas, bordadas pelas mulheres de Ar- _ rayollos, ou parados á porta das vendas, onde o vinho das talhas de barro é medido em canecas sobre alcadefes, e d'onde saem plangentes cantares, acompanhados pela adufa árabe.

Extramuros, em caleça, foram procu- rados os pontos nos quaes Évora se oífe-

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rece mais monumental. As chuvas torrenciaes da véspera haviam-na posto muito asseada, e, áquella hora da tarde, o sol cobria-a de luz ardente, fazendo scintillar as vidrarias das rosáceas, das janellas, dos azulejos, como pedras preciosas em coUos pal- pitantes de moiras! E assim luzida, dentro de suas muralhas e vigias, encimada por seus eirados, tor- res, minaretes e coruchéus, a contemplaram os meus doutos companheiros, sob o mesmo culto espiritual.

Passados alguns momentos, absorvidos pelo inol- vidável espectáculo, encontraram-se as opiniões, cruzaram-se os apropositos, e o céo, a terra e a arte alli foram exaltados com palavras conscientes, que eu attentamente escutei :

Neste céo, por vezes irrequieto, carregado de informes tintas vigorosas, domina agora o anil in- tenso, que se reflecte no torrão cerbuno, e que, fundido com o rispido verde das azinheiras e o ver- melho quente dos descascados sobreiros, rever- berações de castos e doces tons opalinos. D'este phenomeno, que mais visivelmente se verifica na paisagem alemtejana, é imagem a nossa antiga pin- tura. Sob este céo, e nesta mesma terra, por onde passaram as civilisações romana, goda e árabe, vi- veu uma corte nobre e soberana, rodeada de ca- valleiros, de sábios, de escriptores e de artistas ; e ainda hoje, sob esse anil infinito, se acolhe o

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povo mais característico e a provincia mais rica de Portugal I Vamos indo ; temos que fechar as ma- las.. .

E agora, como nas outras tardes, quando o hori- zonte rubra, o céo esfria e o branco azula, eu vol- tava apprehensivo ao hotel, como o mendicante

--^'--^^^^íí^^^^i ^

volta ao casebre com a sacola cheia de trigo fino, sem tempo para aproveitar toda a esmola... Eu não tinha cabeça para deter e aproveitar tamanho obulo !

Decididamente, não ia a Extremoz.

Privava-me, é certo, da melhor e mais instructiva companhia, de elementos sólidos que me enrique- ciam; mas era necessário não complicar mais a va-

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liosa lição que recebera ; era preciso coordenar parte do muito que me aturdia a cabeça, para não perder tudo e, sobretudo, para evitar alguma 7^aia em historia, figura nalguma apreciação, em que fatalmente teria de incorrer, e. . . eu ainda tremia do sorriso do meu amigo Barata. . .

Para estar á vontade na companhia de Joa- quim de Vasconcellos e de sua mulher, numa ex- cursão em que a historia, a archeologia, as scien- cias naturaes, a arte e a litteratura nos surprehen- dlam a cada passo conclui ou ser tão sabedor como elles, ou ignorante a ponto de os não enten- der.

Eu não estava em nenhum dos casos : elles par- tiram e eu fiquei. . .

Ao outro dia, com o meu álbum, um livro de notas, um lápis, um metro e um binóculo, eu se- guia, pela mesma ordem, as pisadas dos eruditos mestres.

José Maria e Carlos Alberto Eça de Queiroz

UMA das raras vezes que estive na companhia do escriptor foi no atelier de Columbano.

A seu pedido, emquanto o romancista posava para um retrato de perfil, que o pintor modelava com caricia, eu explicava-lhe a manufactura da ta- peçaria de ArrayoUos, que o auctor da «Reliquia» desejava conhecer, e que a esse tempo eu conse- guira reconstituir pelo processo primitivo, isto é, banindo da tinturaria das lãs anilinas e empregando para esse fim cores vegetaes.

Quando, em Paris, o procurei, na sua qualidade de cônsul de Portugal, nunca o encontrei no con- sulado, e ainda bem, porque Eça de Queiroz pres- tava mais relevantes serviços á Pátria, escrevendo em Neuilly a «Correspondência de Fradique Men- des», do que nas salas do consulado, na rua de

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Berry, apaparinhando os compatriotas, de estada

ou de passeio na capital da França. .

Assim, a falta de cumprimentos á nossa gente foi \

vantajosamente compensada pelo extraordinário trabalho litterario que eile legou ao seu paiz !

Mas, se não tive o grande prazer de me abeirar muitas vezes de Eça de Queiroz, conheci-o, com intimidade, na pessoa de seu irmão, não pelo que este d'elle me contava, mas porque entre es- sas duas almas havia a mais intima correlação ; e, se Carlos Alberto Eça de Queiroz fallasse mais ponderadamente e escrevesse livros como José Ma- ria, os dois irmãos seriam um e o mesmo homem.

Conto aqui um episodio das nossas relações :

Carlos Alberto fallava alto, ria alto, e em todo o seu ser transparecia essa aureola que a felicidade dá. Quem não conhecesse de perto as preoccupa- ções d'esse rapaz, de mediana altura e bastante del- gado, veria nelle somente um irónico, e, por vezes, um cynico.

Nada d'isso. Elle era, verdadeiramente, um bom moço, cheio de sentimento, juntando a estas a quali- dade de homem de fino espirito, com a força de vontade para dissimular os seus profundíssimos desgostos.

Quantas vezes não tirou elle á minha vista a mas- cara de sorrisos, com que cobria tantissimas maguas!

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A' mesa do restaurante me disse elle que ten- cionava suicidar-se. A convicção, a serenidade com que m'o revelou, fizeram-me tremer !

Logo nessa mesma noite, o eterno problema foi discutidissimo com exaltação. Por vezes, os seus argumentos foram apparentemente convincentes, pelo brilho com que eram expostos, mas careciam de base solida e de razão justificada.

Então, deixei-o esgotar o Ímpeto com que defen- dia os seus paradoxos, e meia hora sem opposição bastou para que se calasse, desconsoladamente. Nada para estafar um teimoso, como não teimar com elle.

Meu caro amigo, se a ideia é disparatada por si, defendida pelo próprio auctor é criminosa!

O suicida, quando não é um desvairado, é um im- postor ou um cobarde ; sendo este, dos três esta- dos mórbidos, mais que o da insensatez, mais que o do snobismo, o que mais faz augmentar o nu- mero dos suicidas.

Disseste ha pouco : «E' necessário ter coragem, valor, para acabar com a vida». E' absolutamente mentirosa a tua asserção. Para pôr termo, para não continuar, não é preciso valor... Valor, coragem, são qualidades precisas para luctar, e não para dei- xar-se vencer. Vou contar-te a historia do caçador, tal como me foi contada, quando eu era bem novo ainda :

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«Occulto no mato, o caçador esperava uma en- trada de rolas. O ponto que havia escolhido ficava na eminência d'um despenhadeiro, sobranceiro ao mar. Quando o emboscado porfiava um bando de rolas que apontava do sul, sentiu passos, espreitou e viu um homem que caminhava apressadamente, subindo a encosta. O aspecto do homem deixava adivinhar o seu intento. Bruscamente, retrocedeu para apanhar o chapéu, que uma haste silvestre lhe tirara da cabeça.

De novo continuou a subir olhos injectados de sangue, olheiras profundas, molhadas pelo suor que lhe escorria da fronte, bocca aberta, lábio cabido, mãos ensanguentadas das silvas ^ que se vinha am- parando, e, por fim, trocando as pernas, desalen- tado!

Num ultimo arranco, correu para a beira do pre- cipício ! . . . Então, o caçador gritou-lhe, e, de es- pingarda á cara, ameaçou-o de morte. O suicida detem-se . . . com medo de morrer ! . . .

Dize-me qual a qualidade de coragem ou va- lor d'essa espécie de homem? Dize-me que diífe- rença fazia a esse alarve morrer de um tiro, ou dei- xando-se despenhar sobre a agua fresca, que em baixo batia na rocha? Dize-me também porque é que esse estúpido egoista não queria morrer des- carapuçado ? . . .

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Não tenhas duvida, meu amigo ; este, como quasi todos os suicidas, representa o prototypo da cobar- dia ; e, se fosse possível pôr neste mundo os que têm realisado o seu estúpido intento, para os fa- zer bater, com risco da vida, no campo da honra, defendendo a sua própria honra, ou no campo da batalha, luctando pela Pátria, deitavam a fugir, ou morriam de medo antes do signal de combate.

Não quero dizer que na tua pessoa exista, ou venha a existir, um cobarde ou um impostor; mas pôde vir a existir um criminoso, não porque te lembraste de roubar a sociedade, privando-a da tua pessoa, como pelo terrível exemplo que lhe darias, pondo em pratica a tua inqualificável ideia !

A notícia de um suicídio é como um cartaz at- trahente a reclamar mercadoria a incautos consu- midores, os quaes, sem o espaventoso reclame^ não fariam uso d'ella ! . . .

Seja qual for a tua situação, o teu dever é espe- rar.— Doença? eu também sou um doente e não me mato por isso; e, se algum medico for tão cruel que me annuncie o dia da morte, na véspera man- do fazer um par de botas de duas solas. .

O que dirias tu, se, do continuo estudo dos ho- mens de sciencia, que, dia e noite, corajosamente se sacrificam por nós, resultasse o remédio para o teu mal ? . . .

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Dada esta hypothese, suppõe, por momentos, o inconsolável desgosto que darias aos que te esti- mam, se, horas depois de pores termo á vida, re- cebessem a noticia d'essa conquista?. . .

Ouve-me : nada de replicas cançadas ; tens que me ouvir, visto que me incommodaste. Quem te diz que, em virtude da casual combinação dos differen- tes alimentos d'uma refeição por exemplo, d'esta que acabamos de ingerir não possa operar-se no teu organismo a cura do teu mal?. . .

Entre outras coisas, íiz-lhe prometter-me que não se isolaria nunca. O isolamento, em pessoas d'este propósito, é o peor dos symptomas !

Chegámos, dias depois, tornando elle ao mesmo assumpto, a promettermos um ao outro, debaixo de palavra sacratíssima, que elle me faria saber o dia, a hora e o local em que poria fim á sua in- valida existência ; e que eu não impediria, nem re- velaria, a sua ultima determinação.

* * *

a luz do alvorecer banhavava debilmente a fa- chada da egreja dos Martyres, e, atravez da vi- draça reles da janella, punha um tom frio na face

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do meu desconsolado amigo. O criado trazia-nos a conta.

E' tarde, Joaquim? perguntou Eça de Queiroz.

Sim, meu senhor. São horas d'irmos á vida. . .

Pois, para te contrariar, vaes dar-me, meu óptimo cidadão de Tuy, outra chicara de bom café . . .

Esperando mais alguns goles da agradável e enervante bebida, o meu espirituoso amigo cahiu numa meditação profundíssima, como profundís- simo era agora o socego em todo o restaurante, tu- multuoso mercado de magnas orgias. . .

D'ahi a pedaço, o Joaquim trouxe o café. Vinha bocejando pelo corredor, e, ao pousar o moka sobre a mesa, allegou que a demora tinha sido devida a estar o fogão apagado e ter que fazer lume novo.

A distracção do meu companheiro era tal, que não deu pelo criado, e machinalmente despejou na chicara a requentada infusão, servida numa leiteira de casquinha ingleza.

Aquella hora, o aspecto do gabinete era desola- dor e cada accessorio infecto ! Nada resistiria a um exame a frio. . .

As lithographias, enquadradas em estreitas ba- guettes a oiro falso, representavam odaliscas de seios nús, com olhos lúbricos, de moças de baixo preço. Sobre o tabique, papel caro e de mau gosto, com

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um sulco marcando a altura das cadeiras ; os re- posteiros, de juta, encolhidos em vincadas pregas, estavam sebentos das mãos dos criados.

Ao canto, uma chaise-longue de forro vermelho, no fio e com as molas desconjunctadas. No an- gulo opposto, um cabide-bengaleiro, de industria austríaca, com braços movediços, columna semsa- bor, tendo por base um prato torneado, de grossa madeira.

Sobre a mesa, rectangular, disposta ao meio do cubículo, a toalha ostentava provocantes nódoas de ferro. A louça exhibia, em monogramma, as lettras R. C., e o seu esmalte riscado dava-lhe, a modos, aspecto pelintra. Ao centro, sobre um guardanapo que occultava manchas de vinho aguado, erguia-se um fructeiro, que lembrava cargo florido de arraial saloio, e cujas flores sédiças eram tocadas pela ex- tremidade inferior de um lustre de cristal, a gaz, com moscas fallecidas, que causava fastio.

Simultaneamente, levantámo-nos, e, sem trocar- mos uma palavra, dirigimo-nos ao esquelético ca- bide, atirámos com os chapéus ás nossas tresnoita- das cabeças e desenfiámos as bengalas do enxertado bengaleiro, com impetuosidade !

Toda esta contra-scena foi alarmada pelo estre- pitoso rodar d'uma tipóia, que, ao estacar junto á valeta, pôz de sobre-aviso o Joaquim, que nos pe-

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diu que não sahissemos, com o convincente argu- mento : que não lhe convenia^ áquella hora, abrir a bêbedos e bêbedas. . .

Pouco depois, a tipóia largava a porta, com di- zeres sujos, proferidos por andaluzas, que nem Dios escapou, secundados, em mau hespanhol, por más- culos descendentes de súbditos do Senhor D. João IV. . . , e nós alcançávamos o ar livre, puro e fresco, da manhã, desempestador da atmosphera de que nos haviamos impregnado durante quatro largas horas !

Em cima, no mais elevado ponto do frontispicio dos Martyres, a cruz doirava pelos primeiros raios do sol, que transpunham as coberturas telhadas da casaria opposta.

Eis, unidos, dois elementos fundamentaes para a vida : Luz' e Fé. . .

Eça de Queiroz, depois de sublinhar ironica- mente esta symptomatica phrase, desceu silencioso todo o Chiado.

Eu, silenciosamente, marchava a seu lado, recor- dando dos seus desolados desgostos o terrivel pre- sagio que elle me havia revelado.

Na madrugada seguinte ao perecimento de pes- soa sua muito querida, chegou á janella da casa onde morava por cima da tabacaria Mónaco e, quasi sem alento, na vaga escuridão da noite, pensando alto, perguntou :

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Qual de nós irá agora ?

De baixo, da rua, uma voz respondeu, nitida e vi- vamente :

E's tu,

E foi elle, de facto !

Se não tem morrido da doença que tanto o preoccupava, não sei se cumpriria para commigo a sua solemne palavra. Qanto a mim confesso muitas vezes me lembrei de faltar a ella, como um perjuro ! . . .

A DuQUEZA DE PaLMELLA

As Cozinhas Económicas

POR mais cogitações, não enxergo melho- ria tão profícua, até hoje posta em pra- tica em favor da classe menos abastada e desprovida de fortuna, como as Cozinhas Económicas.

Como de todos é sabido, deve-se esta benemérita instituição á Duqueza de Palmella. Digo-o, porque, querendo eu agradecer á lUustre Senhora a ma- gnifica refeição que me proporcionou, não o podia fazer sem exaltar o seu nome e sem me referir á sua benéfica obra !

Por circunstancias de trabalho, falta de tempo e de alimento, longe de outro recurso, de um res- taurante, de uma taberna, onde, de resto, se paga

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,á^

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caro e poucas vezes se come bem, tive que recor- rer á Cozinha dos Prazeres, a inicial das installa- das nos bairros mais populares e industriaes de Lisboa.

A' porta, hesitei, não por vergonha de entrar, mas por ir alli desfructar, á sombra dos pobres, mais pobres do que eu, vantagens, que a elles pertencem.

Emquanto me debatia entre a vontade e o di- reito de comer quasi de graça, os meus olhos des- cortinaram, em grupo, mãe e filho, como as ima- gens da Virgem e do Menino. Pela falta de cor, não me pareceram entes vivos, mas, sim, figuras es- boçadas a claro-escuro sobre o muro branco que lhes fazia fundo, aureoladas pela transparência d'um nimbo cruciforme, como que a symbolisar o sacri- ficio nesse rosto materno, cheio de dor e de sup- plica!

A santa figura dirigiu-se para mim, e, á distan- cia a que a sua fraca voz se podia fazer ouvir, dis- se-me :

Pôde soccorrer-me, meu senh. . . Não a deixei concluir, e propuz :

Quer vossemecê uma refeição egual á que vou comprar para mim ?

Era uma grande esmola !

Munido das respectivas senhas, entrei na cozi-

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nha desassombradamente, com o direito social de ter equilibrado a fortuna dos meus tostões com a ausência de meios da minha companheira, e enca- minhámo-nos juntos para uma das mesas.

Do balcão zincado, luzidio como prata, transpor- tei a lícharia, que uma Irmã foi servindo de ma- gro, por ser sexta-feira tudo de boa qualidade e de um as- seio inexcedivel !

A hora era de pouco mo- vimento: sete pessoas me- tendo-me na contadas quaes se refaziam em ditferentes pon- tos do amplo barracão, tran- quillamente.

Havia no ambiente o que quer que fosse de estranho, invisivelmente inspirado, que impunha respeito e deixava transparecer bondade ! D'ahi a pouco, eu começava a ver o meu similhante sob a mais Um- ' - -*-.^^p<í^

pida conciliação, no mesmo sentimento de solida- riedade. Vi, symbolisados na tira de luz que cor- tava a meia-tinta que nos envolvia, e que o sol projectava atravez da vidraça, em cima, na cober- tura, em vez de impurezas pairantes na atmos-

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phera, num sorriso fraternal Amor e Huma- nidade !

Diga-me : tem mais algum filho ?

Tive outro, que morreu tísico, aos três annos. Foi sempre muito infezadinho, assim como este, que estou a ver quando Deus m'o leva também...

Não ha de ser assim; tenha fé. . . Não se apo- quente, para a comida lhe aproveitar. Quando al- guma grande alma como a da Senhora Duqueza de Palmella estabelecer em Lisboa uma Mater- nidade, a tuberculose a tisica não hade matar tantas creanças ; pôde ter a certeza 1

Que é isso de Maternidade, meu senhor ?

E' uma casa onde as mulheres pobres vão ter os filhos. Entram para essa casa dois mezes antes do parto, para se fortalecerem, de modo que os fi- lhos possam vir ao mundo robustos, e de sa- hem depois de bem tratadas e com saúde para po- derem crear.

Ah!...

Mas o que mais ajuda a matar creanças e a enfraquecer adultos, é a deficiência dos alimentos de primeira necessidade : o pão, o leite, o vinho, o azeite e outros, que a deshumanidade interesseira e egoista dos usurários falsifica, com a dupla cruel- dade de cercearem ao pobre consumidor, que os paga por dois tantos do que deveria pagar, o peso

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e a medida ! Pensa vossemecê que haveria tantas doenças, se o que por ahi se vende fosse tão puro como o que aqui nos forneceram ? Para que não fi- que fazendo uma ideia errada a meu respeito, di- go-lhe que também sou pobre. Trabalho dez horas por dia. Sou poupado. Pagam-me o meu trabalho, e ando sempre o que se chama com a bojada debaixo d' agua ! Uma de duas : ou não sei ganhar a mi- nha vida, ou me levam de mais pelo que preciso para viver.

Tem razão ; está tudo pela hora da morte, e o bocadinho de pão que uma pessoa leva á boca parece que não faz proveito !

Desculpe o eu não esperar que acabe de co- mer ; tenho que ir ao meu trabalho.

Ora essa ! Seja pela sua saúde !

Não me agradeça ; agradeça á Senhora que instituiu as Cozinhas Económicas.

Ella, a pobre mãe, ficou beijando o filho, e eu conservei a cabeça descoberta até transpor o limiar d'essa benemerente e bemdita casa.

I J ASSADA a Casa da Agua, ao cimo das Amo- ■*- reiras, numa casita que, pela sua situação, domina Lisboa, vive António Arroyo.

E' o que se chama uma habitação lavada d'ares e muito soalheira ; tectos brancos, e, nas paredes, a meios tons alegres, quadros, esbocetos de pintura, medalhões e bustos de músicos e escriptores de no- meada; estatuetas de artistas celebrados; desenhos á penna e a lápis, que alternam, em disposição equi- librada e despretenciosa, com faianças na maior parte, das nossas antigas fabricas.

Livros por toda a parte ; gravuras, chromos e photographias de humanos cultores das coisas bel- las, que foram, são grandes e nunca serão peque- nos.

Mobiliário, o indispensável ; ausência de cortina- dos, de reposteiros, nas janellas e nas portas, para

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que o ar circule melhor e purifique a atmosphera das divisões, onde se trabalha, onde s^/h:^ boa mu- sica, onde se vive e se descansa.

Todo esse adorno artístico, que, no aspecto, é só- brio e quasi pobre, a impressão de nos querer dizer :

Vivo, penso e sou feliz.

Raras vezes o meio em que vive o artista deixa de ser a pura expressão da sua alma; e essa exce- pção não se no interior da casita altaneiramente collocada ao cimo das Amoreiras.

Tenho, de ha muitos annos, notas que enchem largas folhas de papel, e dariam para escrever um succulento volume, sobre António Arroyo; e, com- tudo, não sei mais do que dizer o ponto da cidade onde elle habita, e esboçar o meio que o cerca.

Este simples modo de me referir a um dos crí- ticos d'arte mais notáveis da minha terra é-me suggerido penso eu pela simples maneira do seu viver.

A pedido de um meu amigo do Porto fvae fazer bons seis annos), procurei, na sua solarenga vivenda de Lisboa, um homem duas vezes illustre: pela fidalguia e pela sua obra litteraria.

Desempenhei-me da missão, e tive o gosto de vêr o seu meio, confortável e artistico.

Depois de dar o meu recado e de admirar a pe- sada e severa bibliotheca como Galland, o cele- bre decorador aconselhava ornamentar onde as raridades documentaes, os pergaminhos illumina- dos, os códices e as chronicas, disciplinadamente perfilados, esperam as consultas, o nobre escriptor dava-me as boas tardes, entregando-me aos ama-

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cSi».^"!

veis cuidados da Senhora da casa, para me mos- trar a capella.

Venha, venha vêr ; interessa mesmo até aquelles que não são religiosos.

As pessoas que vi- vem mais pelo coração que pelo calculo, são, em geral, tardias na resposta, e, como essa demora as faz perder a opportunidade, na mór parte dos casos deixam de ter o que se chama o prazer dos deuses !

A minha vingança não podia ser senão muito attenciosa, por- que ás senhoras tudo ~" ~~ lhes é devido, mesmo

quando se enganam. Mas não pude responder coisa alguma, e entrei na capella, cuja ornamen- tação se filia no característico estylo D. João V, com as orelhas quentes e a garganta sêcca, e não me persignei !

A minha emoção justificava a minha indolência. Porque era que essa illustre Senhora, que quasi

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me não conhecia, me tratava como um ímpio ? Eu era incluido, decerto, na generalidade, era uma das pessoas para quem os santuários apenas interessam pelo lado artístico! Sim; não havia duvida! E por- que não ?

Cumpria eu todas as prescrípçÕes da Santa Ma-' dre Egreja ? Guardava, acaso, os domingos e dias santos, e ouvia todas as missas correspondentes a es- ses santificados dias ? Amava o próximo como a mim mesmo ? Não !

Tinha constituído uma familia, como a Santa Lei obriga, para poder dar á Pátria quatro rapagões fortes e desembaraçados ? Não, com certeza que não ! Era um incorrigível celibatário, um inútil, um homem sem prole, como estéril arvore sem fructo, que apenas occupava espaço na terra! E, á maneira que eu mastigava seccamente estas reflexões, a de- licada e crente Senhora descrevia os milagres dos santos, a perfeição das esculpturas, a própria e di- vina coloração dos seus rostos, a riqueza dos estofos, a candura da pomba, que pairava ao cimo do retábulo, sobre o altar, a meiguice do Agnus-Dei. Exaltava os artistas cujos trabalhos se admiravam nos bronzes cinzelados das sacras, nas extremidades e no cal- vário da cruz, d^onde pendia, de uma peça de marfim, um Christo, admiravelmente esculpido, vertendo das chagas rubis finos, com nimbo e era-

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vos de pedras reluzentes. Indicava-me o bello e delicado ornamento das pilastras, dos capiteis e das molduras, que enquadravam os Evangelistas, telas de Vieira Lusitano. Especialisou, dentro d'um triptyco de jnolduras d'ebano, tábuas attribuidas a Grão-Vasco, cujas imagens, da Virgem, do Menino Jesus e das santas mulheres genuflectindo, pare- cem vivificadas, pela correcção do desenho e pela transparência das tintas.

Discretamente, aqui e alem, tons quentes d'oiro, em volta das imitações marmoreadas do alizar, e, a encher o espaço, de uma pesada lâmpada a cha- ma doce e quente, que a refracçao da vitragem fa- zia mudar de cor.

Toda essa resada descripção litúrgica eu escu- tei, com a preoccupação do meu atheismo, pisando uma famosa tapeçaria persa, de cores indesmere- civeis e captivante.

Quando sahi do rico santuário, tão pouco me lembrei de fazer o signal da cruz! Faltava, pela se- gunda vez, ao preceito da ; havia entrado com impiedade e sahia mal agradecido a Deus !

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*

* #

Tempos depois, quando me dirigia ao portal da egreja de Santos, fui tomado por beato!

Os alvaneus que rebocavam a fachada do sa- grado templo, tomaram-me como um carola e como um homem sem obrigações ! . . .

Levava na mão um pequeno volume em oitavo, encadernado á moda antiga, com distico e filetes doirados, como um livro de orações dizendo no frontispício : Noções históricas, económicas e admi- nistrativas sobre a prociíicção e manufactura das sedas em, Portugal, e particularmente sobre a Real Fabrica do subúrbio do Rato, e suas annexas, por José Accurcio das Neves.

Os trolhas, assim que me viram, acotovelaram-se, commentando o devoto, preparando Pipiada...

Um, que se distanciava do grupo, perguntou para estes :

O Preguiça, viste para ahi o Beato?...

O homem, está bem á vista 1 . . .

D'esta vez, prometti não embatucar e preparei- me para lhes dar o troco.

Quando ia a transpor a portada, de cima, um d^elles chamou a minha attenção :

Agora não ha culto; os santos estão tapados. . .

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Como parlamentar experimentado em replicas, troquei ao trocista do bailéu :

Venho vêr o que fizeram os homens e não o que fazem os santos. . .

* # *

Eis como tão injustamente, eu fui julgado, pri- meiro como um atheo, depois como carolissimo beato e um mandrião !

E assim se escreve a Historia. . .

A Hl por 1871, começavam-se a editar na «Biblio- theca dos Dois Mundos» varias obras: Biblio- theca do Povo e das Escolas, Historia de Finança, Historia de Portugal, e muitos romances, dos quaes fizeram barulho : O Conde de Monte Christo, Ro- cambole, os de Balzac e os de Gamillo Gastello Branco.

A esta faina de originaes e traducções, de papel, de lettras e de gravuras, que teve o seu inicio na rua do Carvalho hoje rua Luz Soriano e aca- bou na travessa da Queimada, junte-se o Diário II- lustrado, o Correio da Europa, A Illustraçao Por- tuguesa, almanachs e ainda outras iguarias typo- graphicas, que emanavam da mesma origem, e calcule-se o movimento litterario que desabrochava por aquelle anno e decahia por 1886, pouco mais ou menos.

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Dirigia toda a colossal labutação artística, littte- raria e politica, Pedro Corrêa da Silva, um dos homens mais interessantes do seu tempo, cheio de actividade, de conhecimento do seu officio, de raras qualidades de coração e conversador incansável.

O escrip tório da «Bibliotheca dos dois Mundos» era, por esse tempo, o ponto de reunião dos ho- mens cultos, que intervinham naquelles trabalhos, e os que não tinham interferência nas publicações ou na politica do jornal, appareciam ao cavaco, alli, na redacção do Illiístrado, nas salas da habi- tação particular de Pedro Corrêa, ou nalgum dos gabinetes do Restaurante Club, onde se marcava o rumo intellectual, onde se decidia do destino politico do paiz, onde se fazia a chuva e o bom tempo !

Não é fácil lembrar os nomes de todos esses ho- mens de sciencia, artistas, litteratos e políticos, que por se encontravam, porque Pedro Corrêa era procurado por todos que havia em Lisboa, porque com todos mantinha relações cordealissimas : Bu- lhão Pato, Pinheiro Chagas, Alfredo de Sarmento, Freitas e Oliveira, Osório de Vasconcellos, Cunha Belém, Sousa Lobo, Carlos Eugénio Corrêa da Silva (conde de Paço d'Arcos), Franco de Castro, Hugo de Lacerda, Andrade Ferreira, José Maria Dantas Pimenta, Barros Lobo, Camillo Castello

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Branco, Casimiro Dantas, Eduardo Schwalbach, Fernando Caldeira, Francisco Palha, Júlio César Machado, Guiomar Torrezão, Manuel de Macedo, Júlio de Menezes, Luiz A. Palmeirim, Manuel d'As- sumpção, Marcellino Mesquita, Pedro dos Reys, Sérgio de Castro, Thomaz Ribeiro, Visconde de Monsaraz, Visconde de Benalcanfôr, Dantas Bara- cho, Gonçalves Pereira, António e José Maria de Lorena Queiroz, Pastor, etc.

Pedro Corrêa foi deputado, par do reino, e, ape- sar de toda a sua influencia com todas as situações dirigentes, nunca no orçamento do Estado appare- ceu a verba que remunerasse um logar rendoso, dos muitos que elle podia ter, se os solicitasse.

Sabia dar um sensato conselho, quando lh'o pe- diam, porque, de moto próprio, não se mettia na vida particular de ninguém. Foi testemunha de muitos duellos, porque todos os homens que iam ao campo da honra empunhar uma pistola ou uma espada, desejavam tel-o a seu lado. Tal era a con. fiança que inspirava a sua recta justiça, a sua pon- derada prudência, a sua humanidade e a sua di- gnidade !

Numa das pendências que apadrinhou, e que se resolveu á pistola, tocou a Pedro Corrêa marcar a distancia ajustada, a que se deviam disparar as ar- mas. Quando as suas largas pernas acabavam de

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medir vinte e cinco passos, uma das testemunhas contrarias observou-lhe que havia engano, para menos! Pedro Corrêa contou novamente, e, quando parou, estava áquem um metro da bengala com que antes havia extremado o campo. Foi por ella, encurtou a distancia, e, com a maior serenidade, disse :

Tem razão ; estava enganado.

Elegante, attrahente e limpo, era grande cultor do bello sexo, que via pelo prisma ideal da bella forma. Para elle, as mulheres não tinham qualida- des nem defeitos moraes, nem exigia d'ellas agu- dezas de espirito; desejava-as mulheres e, tanto quanto possível, delicadas e írageis.

Não queria que lhe inspirassem consideração ; desejava apenas que lhe dessem cuidado.

Amava-as e acariciava-as com desvelo. Alfombra- va-lhes o boudoir, não para lh'o enriquecer, mas para que ellas não maguassem os pequeninos pés. Cobria-lhes de rendas a fina pelle, porque pre- tendia elle «para tão delicado producto da natu- reza, o mais delicado producto do artificio». Pe- dro Corrêa dulia a mulher e olhava para as grades d'um locutório freiratico com a veneração de um convicto peccador ! . .

«Amor, Força e Mulheres» seria a sua divisa, se a tivesse gravada no seu sinete d'aço.

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Pelo trabalho, Pedro Corrêa, ganhou duas for- tunas e viveu sempre sem dinheiro ; mas teve essa incomparável satisfação de não ver ninguém pobre ao de si, de não ver soffrer ninguém que o abor- dasse, solicitando o seu auxilio.

Escrevia cem cartas, se tantas fossem necessá- rias, para arranjar coUocação a um chefe de fa- miUa.

Dava as ultimas duas libras que tinha na algi- beira, e mandava empenhar os seus sinetes d'oiro para repetir o desembolso.

Numa d'essas occasiÕes, inesperadamente, e como recompensa de defender uma poderosa com- panhia portugueza, defesa que o seu jornal tomara com calor, alguém punha sobre o bufete da sua sala de visitas um cheque de mil libras. Pedro Corrêa, com o mais attencioso desprendimento, recusou-o.

Encontrava sempre qualidades nos outros ho- mens, e duvidava, por principio, das suas.

Dizia-me elle uma tarde, recostado numa cJiaise- longue forrada de chita de cores alegres :

Crê tu, meu amigo, não ha homens maus nem inúteis : ponto é que se occupem d'alguma coisa. O homem, quando trabalha e produz, perde toda a peçonha.

Não se lembrava elle, ao proferir esta justa sen.

D4

tença, de uma phrase sua (de profundíssima obser- vação), que eu lhe ouvira num momento de justifi- cada queixa :

No mesmo dia em que nasce um homem superior, nascem doze imbecis para o torturar toda a vida !

fuMA das vol- tas de Ar- raj-ollos, onde fui algumas vezes no inverno de 98, o tempo em- maranhou-se.

Antes de deixar a sym- pathica villa, branquejante como estendal de roupas alvas, empoleirada num dos pontos mais elevados do Alemtejo, o vento so- prava em guincho e fazia corrupiar para a direita e para a esquerda as grimpas, nos pincaros das torres e dos mirantes.

As portas e as janellas batiam, os vidros fendiam, os fragmentos estilhavam na calçada com sons ar- ripiadores, desconcertados, corridos com a ven- tania.

Puz-me a cavallo como por se diz quando

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se sobe para um vehiculo qualquer bati com a portinhola e o rapaz da cadêra fez andar a pa- relha.

O dia começava a declinar, quando o chirriao da caleça começava descendo a estrada para Évora.

Em cima, na espherica cobertura, as nuvens pa- reciam desafiar a terra, acastellavam-se, illumina- das por eléctricos tons metallicos, deixando, em pontos diversos, espaços de azul-chumbo.

Por vezes, os austeros agrupamentos dir-se-ia quererem tocar o solo, envolver as azinheiras ! Aqui e alem, pelos campos, rebanhos de ovelhas negras e brancas, cabeças pendidas, chocalhos silenciosos, numa solidariedade medrosa, quietas como os tor- rões que pisavam.

A uma banda, o zagaleto e o cão ; da outra, o pastor, especado, pelo varapau carrasqueiro, do so- vaco ao piso. Todos sem movimentos, sem expres- são, na espectativa : homens e animaes sentiam-se fracos para arrostar com a colossal imtemperie que ia desabar, e, na sua immobilidade, esperavam o que Deus quizesse.

Repentinamente, o signal do combate rachou em zig-zag a cúpula, mostrando pela fenda lume in- tenso, e, momentos depois, em todo o horizonte troou, saltando de montanha em montanha, um ruido cavo, tenebroso !

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Prevendo o auge da tempestade, para que iamos caminhando, o cocheiro prendeu á alavanca do tra- vão o governo da parelha, que continuou no mes- mo andamento e, de pé, envergou o gabão, abo- toou-o, levantou a gola até ao nariz, entalou as abas da churra veste entre os joelhos, sentou-se de novo na almofada, retomou o governo e alegrou as bestas com vozes e açoite.

Pouco a pouco, a fuzilaria tornou-se mais nu- trida, e o tecto abobadado, d'um compacto azul fer- rete, baço, estalava mais perto das nossas cabeças. O espectáculo tornou-se então feroz e refulgente- mente bello, a ponto de me fazer esquecer toda a precaução. Apenas, instinctivamente, os olhos se me fechavam quando as tiras de fogo caíam do céo, como ráils d'aço, incandescentes.

Mais d'uma vez o cocheiro se voltou para mim, esperando alguma ordem; mas eu, attrahido e sub- jugado pelo perigo, ficava immovel, sem poder fallar.

Assim nos encaminhávamos cada vez mais para inesperada bocca d'infernal vulcão, pelas densas trevas da noite. . .

Vencidos alguns kilometros, as muares estaca- ram á porta de uma casita á beira da estrada, por cujo postigo se viam signaes de vida. De dentro, abriram. Entrei, e, emquanto o cocheiro accendia as lanternas, fechava a caleça e tratava do gado.

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eu aquecia-me ao lume da lareira, que a boa gente da casa me oíFerecera.

Fora, os raios illuminavam intermittentemente a paisagem, e o fragor do trovão dava conta da im- mensidade do espaço, com detonações decrescentes, que pareciam murros de mão gorda em tan-tans, morrendo pouco a pouco e espirando longe, remo- tamente longe, do meu escutar.

Ao largar o abrigo, batiam os primeiros pedris- cos no tejadilho do carro. Mais e mais, foi engros- sando o chuveiro de pedra, e, d'ahi a pouco, o chir- rião era açoitado de todos os lados pelo granizo, que parecia desfazer em a vidraça das porti- nholas.

A curto trecho, os pacientes animaes quasi não podiam vencer o embate das cordas d'agua ; do pouco que se enxergava, tive a impressão de que não era caminho que passavam, mas sim um tun- nel d'agua, em desesperada agitação.

Sob a ininterrompida tempestade, seguimos uma hora de assustadora jornada. Subitamente, quasi se volta a caleça ! Abri com sobresalto, para saber o motivo de tão brusco solavanco. Não pude sahir: o torrencial chuveiro era mais forte ainda. Tinha-se partido uma das rodas dianteiras e faltava uma lé- gua para chegar a Évora !

A custo, o cocheiro, com a parelha á mão, encos-

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tou a caleça a um lado da estrada, desengatou, disse blasphemias e foi por outro vehiculo á cidade.

A luz das lanternas amortecia; a trovoada ia cor- rida ao norte, se fazia ouvir longe, muito longe; mas a chuva e o vento não cessavam ! Este soprava tão violentamente, que despedaçava arvores, arran- cava-as do chão, e as mais resistentes, as secula- res, vergavam e gemiam como pessoas. Os arbus- tos, o mato, estalavam com o mesmo estalar das queimadas de agosto. Grandes ramos de folhagem, rolando sobre o macadam, davam ideia de rodas de azenhas em movirnento.

Para alem do muro a que o cocheiro havia en- costado o carro, as travessas da linha férrea, illu- minadas rasteiramente pelo farol d'uma locomo- tiva a distancia, pareciam alpondras de açudes ala- gados.

Entretanto, as rajadas redcmominhava e seguiam com velocidade louca.

Os fios eléctricos davam silvos, como cabreiros, dedos á bocca. Dos mesmos metallicos arames sa- biam estridulos gritos afflictivos, sonidos de trom- betas esganiçadas, que pareciam prenúncios de morte, o acabar do mundo I

E, sem luz, perdida a noção do logar, ensur- decido pelos bramidos da bestial natureza, sem vér nem ouvir na treva absoluta, a imaginação mostra-

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va-me, numa acceleraçao vertiginosa, em linha dia- gonalmente traçada do céo á terra, convergindo a uma sombra cymbiforme, figuras hirtas, meio in- clinadas: o homem, a mulher, seguidos por toda a espécie d'animaes, e, na cauda, um gigante fabu- loso, bochechas enfunadas, impellindo toda essa se- mente de futuras gerações.

lALHO

.LMEIDA

O

s grandes homens de lettras devem ser trata- dos por homens não pequenos da especiali- dade, e eu sou pequenissimo nesse meio. Por isso a minha impressão sobre Fialho d'Almeida será, como factura, tal como a minha estatura litteraria.

Para mais, outros, com melhores barbas do que as minhas que bem ralas são têem desenrolado opiniões, uma vez que outra, com seguridade, que mostram, evidentemente, de pé, o real valor do ho- mem de lettras em questão; e, se assim não fosse, á falta desses cabelludos criticos, o próprio escri- ptor o havia feito, com comedimento e verdade, no seu volume A Esquina, nalgumas paginas sob a epigraphe Autobiographia.

Mas, se os humildes não applaudissem os gran- des e se não se acercassem d'elles, estes teriam um restricto publico. Não é verdade ?

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Propositadamente, estive para solicitar do José Valentim permissão, para, a seu respeito, pôr no papel as linhas que vão seguir, para ter es- tou d'aqui a ouvil-o esta resposta, repetindo as palavras do Divino Mestre :

Deixae vir a mim os pequeninos. . .

Em geral, os homens perdem por não serem co- nhecidos, para poderem ser devidamente aprecia- dos, e Fialho d'Almeida é um d'elles.

E' uma creatura exquisita, que toda a gente vê, mas com quem pouca gente communica.

Um homem mais baixo que alto, mais forte que fraco, com o estômago um rudo nadinha prolixo, de quem muito escreve, muito e pouco anda.

No entanto, o alemtejano de Villa de Frades é robusto, não a ponto de aviltar os fracos com a sua robustez, mas a ponto de poder com o próprio talento, que não pesa pouco !

Fronte ampla, como intabellamento dorico, pla- nispherico. Os olhos, mais pequenos que grandes, investigam com serenidade altiva, como a do so- berbo leão, que, na maior curiosidade, quasi não move as pupilas. Nariz regular, boca meio enco- berta pela barba sedosa, com bastantes brancas, que lhe dão aspecto de um verdadeiro vaticinador, inspirado superiormente !

Sem preocupação, as palavras saem-lhe nítidas.

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envolvidas numa consonância agradável, com as quaes elle consegue, sem esforço, dar volume, forma e côr ás situações mais oppostas. Exterior- mente, vejo-o assim.

Quando por ahi andava, nesta Lisboa que elle tanto admira, dava-se com um restricto grupo de homens : escriptores, artistas e os seus companhei- ros da Polytechnica e da Escola Medica, d'onde sahiu Doutor.

Veiu numa epocha em que Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, de uma maneira vivamente mo- derna, espalhavam conceitos novos, repassados de ironia, e essa maneira irónica foi, e é ainda hoje, tomada como arma aggressiva.

E' claro que Fialho, seguindo o mesmo filão na sciencia de escrever, brocou mais fundo; e, se aquelles que tomou por mestres picaram com As Farpas, Fialho prolongou as feridas das figuradas garrochas com as figuradas unhas dos seus Gatos!

A sociedade portugueza, que, até Camillo, não estava habituada a essa ordem de ideias, fez, da irónica maneira, carapuças^ e ainda agora toma o auctor dos bichanos, mais como cliapeleiro, que como escriptor de espirituosa verbação irónica.

Quer isto dizer que a maneira de escrever, de Camillo para cá, é toda de impressões colhidas na natureza e do natural, e, sendo assim, num paiz

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pequeno como o nosso, no que toca aos modelos vivos, estes estão continuamente vendo as suas pessoas, nem sempre desenhadas a seu contento. Por isso o escriptor humanamente verdadeiro é tido por um mau, por uma creatura que fa:{ pouco das outras, em vez de ser tomado por um artista da actualidade !

E egualmente por outras originalidades é censu- rado o auctor do Pai:[ das upas. Alguém, de pu- dicos ouvidos, perguntou a Fialho d'Almeida a ra- zão por que empregava palavras mal sonantes.

Não se escrevem sujidades com palavras lim- pas. . .

Fialho d'Almeida é um d'esses privilegiados a quem a natureza deu sensibilidade rara. as coisas mais subtis, e valorisa-as de modo a tornal-as evidentes. De um assumpto que, á vista da maior parte dos viventes, pareceria banal, Fialho faz uma obra de arte, pela maneira scintillante de a descrever ou de a expor com a sua fluente palavra, porque o Doctor não é menos empolgante conversando, no que é incansável, do que nas paginas dos seus li- vros, nas folhas das revistas e das gazetas onde se tem exhibido.

Ha momentos em que a exposição é tão gran- diosa, que Lisboa, vista atravez das suas palavras, nos parece ser a mais bella e monumental cidade

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do mundo, que os pequenos arbustos se transfor- mam em altaneiras e copadas arvores seculares !

Os seus ditos espirituosos, os seus à double-sens andam por ahi em varias edições, e até, por vezes, a fazerem reputação de obras cujos auctores não citam o auctor ! . . .

Alguns escriptores da camada que lhe succedeu chamam-lhe o Mestre.

Manuel Penteado chama-lhe o grande e hor- rível escriptor. Trata-o assim, diz elle, por não conhecer maneira mais significativa de exaltar uma pessoa ou um facto. Outros, ainda, commentam na ausência a Mal empregado talento /. . . »

No meio de toda a sua anormalidade de homem de valor, nos differentes aspectos da sua perso- nalidade, ha dois cujo contraste o define : o forte, o indomável, e o fraco, até á timidez ; o homem que ri com sarcasmo e o que chora com a senti- mentalidade dos que mais sentem ! Ao mesmo tempo que, com incisiva critica, castiga, chora-lhe o coração ao presenciar o infortúnio alheio ! Quando lhe citam uma desgraça, Fialho mostra, na careta que o transtorna, toda a vibração angustiosa dos seus nervos; soíFre, como bom que é!

Tem as indecisões dos homens desprevenidos, a ponto de o mais pequeno obstáculo lhe parecer uma barreira invencível.

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A primeira vez que sahiu de Portugal, em com- panhia de dois amigos um delles o dr. José Gen- til, o outro não me recordo agora do seu nome com destino á Castilha Velha, Fialho e os seus dois companheiros tinham prevenido todas as h}^- potheses : as malas na estação, bilhetes comprados, guia official, jornaes, recommendações; nada faltava.

Quinze minutos antes de o comboio se pôr em marcha, um extemporâneo aguaceiro ia fazendo com que o auctor dos Gatos não partisse !

Sim dizia elle vocês comprehendem: esta coisa de partir para Salamanca, Valladolid, etc, a chover, é uma sensaboria insoffrivel !

Datam d'esse setembro de 901 em que Fialho comprou em Valladolid, um paraguas^ por dos pe- setas, por se acaso... os seus estudos sobre a Hespanha, que todos os annos visita, merecendo- Ihe particular attenção as províncias da Galliza trabalhos concernentes á historia da Arte e, sobre- tudo, ao caracter regional d'esse interessante paiz, cujas aguas cantabricas continuamente banham o nosso torrão minhoto, trabalhos, que hoje devem ser importantes, porque Fialho d'Almeida desen- volve o mais possível os apontamentos, em pre- sença do original. E uma grande obra, apenas de- pendente, creio, de alinho litterario e de pequenos retoques.

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Para este fim, tem Fialho, de ha bons sete an- nos, preparado uma superabundante bagagem de publicações, desde o in-folio ao folheto, desde a gravura á photographia.

Mas deixemos a futura obra do escriptor, que, por agora, a elle pertence, e voltemos á do seu passado.

Oiço dizer que Fialho d'Almeida não tem uma grande obra litteraria, ou, antes, que nunca escre- veu um grosso volume, cujo assumpto occupasse todas as suas paginas um livro de sciencia, de historia, ou um romance.

As obras d'um escriptor não se medem aos pal- mos ; alem de que, os grandes livros são muitas vezes salvos por pequenos trechos. Trezentas lau- das de typo miúdo e compacto não conseguem muitas vezes dizer o que o auctor deseja, emquanto que meia dúzia de linhas nos podem dar nitida im- pressão da grandiosidade do mundo e da pequenez dos seus habitantes.

Dos raros artistas das lettras, uns, avaros do seu talento, dão-nol-o em pequenas doses, em extensas descripçÕes ; outros condensam-no em curtos fo- lhetos. Fialho está neste caso, e, portanto, não me parece que tenha dado menos aos leitores do que aquelles, em maior ou menor quantidade de traba- lho. Assim succede nas vinte e seis paginas de

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Los de Manganeses^ cheias de caracter local, e d'esse aroma que as mulheres e os cravos rescen- dem, no ar cálido estremenho ; nas vinte paginas da lúgubre jornada á luz de brandões, que foi o trans- porte do cadáver do rei D. Luiz para o templo dos Jeronymos, espectáculo que, pela descripçao, ideia de um friso repuxado, bronzeo-serbuno, com toques de luz mortiça, estendido ao longo da mar- gem, desde Cascaes até Santa Maria de Belém ; nas trinta e seis paginas d'essa bacchanal do café de lepes á Aloiraria, onde acabou, saturado de pi- teira, o grande violoncellista Sérgio da Silva, e nos Ceifeiros.

Quando li os Ceifeiros^ quinze paginas apenas, onde se condensa uma das obras mais extraordiná- rias da litteratura portugueza foi á hora da mi- nha primeira refeição. Assorda, ovos e chá tudo me pareceu gelado ; quente, essa narrativa em- polgante da vida rural alemtejana ! Nada que mais intensidade possua, que mais impressione, que mais constranja! E' o quadro de labutação humana mais vivamente representado, onde se detalham os mo- vimentos e onde o olfacto sente e define toda a misturada de essências e resinas, que ressuma da estéppe alemtejana !

Pouco a pouco, estava metido na faina, empu- nhando a foice, sem força, sem ar, para poder

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soccorrer os desgraçados ceifeiros, asphyxiados sob um escaldante sol de 44 graus ás noi^e horas da manhã! . . . E como Fialho nol-o descreve !

«Começa então o pavoroso espectáculo da natu- reza e do homem, torturados a fogo para expiar o crime de uma ter dado fructo e do outro insistir em viver d'elle

Aqui, sim ; aqui, está justificada e evidentemente mostrada, com todo o poder d'uma observação sem limite, a dura phrase «A lacta pela vidar>. Aqui, reflecte-se com inexcedivel nitidez, a teimosa am- bição da fraca humanidade, que se mata na es- perança de vencer a robustissima e invencível morte . . .

Quando tentei enxergar a cor d'essa paisagem infernal, que Fialho parece ter apontado á margem com tintas quentes, pareceu-me observal-a no pró- prio local, pareceu-me vel-a, não atravez das ba- gas de suor que me cobriam os olhos, mas atravez de chumbo derretido, que me cahia da fronte, e a polychromia mostrava-se monótona, fosca, como metaes amoUecidos ao lume !

Por esse mesmo prisma vi todo o horror dos pa- cientes fragueiros, que soffrem sem protesto e sem supplicas, com as línguas sêccas, como as dos cães sequiosos. Fallar seria morrer !

Como é que se chega a escrever assim?! Não

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digo bem : como é que se chega a vêr tão perfeita- mente ?!

Quando acabei a leitura, olhei um pão, que, antes, me parecera nutritivo e sympathico, e senti o asco que se experimenta quando se olha para a tran- quillidade de um assassino sem remorsos.

B.

.SSOBIOS DE OARRO

NO julho de 1908, em dia de festa, ou, antes, de pretexto para festa, encontrei entre a mi- nha correspondência, sobre a mesa do almoço, a carta de um amigo, nessa occasiao em Paris, para onde partira, deixando Lisboa, havia duas semanas.

Dizia d'este teor :

«Sinto não estar ahi para o grande abraço! No dia da minha partida, deu-me o Victor Ribeiro, para si, o nome de um barrista, que encontrará aqui in- cluso. Este nome não vem no seu livro Cerâmica Portiigue\a.

«Se não temesse incommodal-o, pedia-lhe o favor de me comprar no Chaves os bustos-assobios do João Franco, AfFonso Costa e Bernardino Machado, que não tenho na minha collecçao, nem os vi nunca á venda; mas existem, porque o Ribeiro os viu».

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«Nada mais interessante para quem se occupa de cacoSj do que procurar bonecos de barro em dia festivo». Foi o que respondi, na volta do correio, ao meu amigo, para o Grand Hotel de Russie Rue Drouot.

Passava das 1 1 horas, sob uma atmosphera pe- sada e quente, d'essas que ameaçam enredar o tempo, quando tomei um eléctrico no Conde Ba- rão.

Ao dar o pataco, recommendei :

No ponto mais próximo do Pateo do Junca, á Fonte Santa.

Poucos minutos depois, o carro imbicava pela Pampulha e parava mais adiante, ao signal de um toque sêcco de campainha.

E' aqui, lembrou o conductor.

Apeei-me, e, pela rampa que leva ao palácio real, subi, e, commigo, um correio de ministro, ho- mem alto e forte, d'esses homens que, em vez de caixa, possuem alentado bahii thoracico, cinco ve- zes honorificamente condecorado, limpo, bem posto, calça enrugada sobre a espora. Dirigia-se a palácio.

Do sol, cada vez mais quente, abriguei-me sob a grata protecção da folhagem verde e viçosa de uma arvore, enraizada fortemente no jardim fron- teiro á habitação do rei, tirei o chapéu, como que saudando a bandeira vermelha, cor de sangue, que

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tremulava, presa á haste alta e branca, na fachada da regia habitação.

Depois de mitigar a fadiga e crear animo para meter-me á soalheira d'esse meio dia de julho, agradeci á rainha dos vegetaes a sua meiga sombra, olhei mais uma vez a bandeira cor de sangue, e parti em busca do Franco, do Affonso Costa e do Bernardino Machado.

Ao cimo, onde o muro da tapada real faz angulo, umsympathico garoto, a quem pedi indicações, con- testou-me :

Bem sei, meu senhor ; o Pateo do Junca, onde foi a fabrica da louça ; venha comigo.

Rebocado pelo amável piloto, de nome José os Josés são sempre amáveis ! . . . me deixei ir, certo de abordar a bom porto. E, agora, sem a preoccupação de me perder naquellas aguas, fui recordando factos da minha mocidade, de amigos que não vivem e jazem bem perto d'aquelle si- tio e d'aquelles cyprestes que eu ia vendo, attra- hido pela sua ramaria verde-negro, robustos e cres- cidos naquelle campo de eterno somno, onde elles vigilam, único campo onde os homens são eguaes, único campo onde se encontra a Verdade !

Bem perto d'alli também, outro campo, mas de alegria, a contrastar com esse outro, que a ironia chama dos Praieres, onde tantas vezes com sau-

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dade o recordo eu e os meus companheiros, á porta da tasca do Doirado^ olhando as estrellas, cantávamos ao som de bem tocadas guitarras. En- tão, subitamente, recordei algumas quadras d'esses tempos :

Oh morte, cruel tyranna, Contra ti todos tem queixas ! Quem has de levar não levas, Quem has de deixar não deixas !

Outra quadra, que não foi acolhida com applauso, pela incisiva ironia do seu conceito, berrada por um dos poetas, que as noites de pouco dinheiro punham de mau humor e S3^'^ tematicamente na contraria :

Do sebo faz-se a vela, Da massa faz-se aletria; Faz causar febre amarella Do fado a semsaboria ! . . .

Os fadistas d'esse tempo, tantas noites juntos debaixo do parreiral do Doirado, deram distinctos officiaes de marinha, generaes e outras patentes superiores do exercito, posições elevadas no nosso meio social e até diplomatas !

E' aqui, meu senhor, disse o meu amigo José, ao chegar ao Pateo do Junca.

Parámos no arqueado corredor que leva ao pa-

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teo, para tomarmos uma provisão de fresca som- bra, e d'ahi desfructei o desolador aspecto, conjun- cto de architectura de grandiosidade reles, de que não é fácil explicar o desconcertado motivo.

Creanças sujas, de pernas tortas, chafurdavam na terra, como bácoros sem pastor, cerca de portas abertas, que servem habitações como antros, onde se adivinhavam, na escuridão, mães que labutavam, praguejando, e ás quaes o chorar dos filhos não faz mossa.

Dentro, um largo recinto quadrado, como um claustro em ruina, com arcarias cujos espaços, um que outro, são fechados, quente pela pasta do sol, que sobre toda a área cahia a prumo. No angulo opposto ao da entrada, debaixo d'um dos arcos abertos, uma escada de madeira rompe ao cimo, em alçapão, o pavimento.

Vamos a isto, amigo disse ao meu cice- rone, indicando-lhe a travessia.

O bater das nossas rápidas passadas sobre o solo que nos queimava os pés, como se passásse- mos o lar de um forno aquecido, fez correr uma osga, que naquelle silencio claustral se deliciava, espalmada na parede branca.

Em cima, perto do alçapão, encontrámos o ar- tista que eu procurava ; mas oh surpresa! o ar- tista, o Chaves, era um conhecido de infância.

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Pois é você o auctor dos assobios ? !

Eu e meu filho ; responde, apontando para o fim da officina.

Via-o por ahi com ar de pensador, de philoso- pho ! De resto, julgando assim, não me enganava por muito ; os artistas soffrem todos de uma pon- tinha de philosophia. . . Pois, amigo Chaves, aqui me tem, neste dia quente e de festa, para com- prar o João Franco, o Aífonso Costa e o Bernardino Machado.

E, emquanto o Chaves Júnior ia pelo caixote em que guardava as celebridades politicas, dei uma vista d'olhos ao casarão, que, desde a entrada, me havia impressionado pelo desalinho, pela diversi- dade de objectos e pela cor inexplicável do conjun- cto : formas, ornatos de pasta, suspensos por cor- das, cavallos de verga, revestidos de pasta, desti- nados a picadores de vara larga um baio, um castanho e um russo com os membros pintados em saiotes de linhagem, que a corrente d'ar que circulava fazia mover lentamente. Pelo chão, pros- cénios de theatrinhos de marionettes ; desenhos de animaes e projectos de scenario para ateliers pho- tographicos ; cabeças de toiros, de leÕes, de caval- los ; aves, festões de flores, coroas, bustos, meda- lhões— sendo um d'elles o perfil do conde de Paris, com dedicatória e assignado pelo artista

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<iChai'esfecit» molduras e muitas outras coi- sas que surgiam de misturada com ferramentas : teques, martellos, formões, tijellas, esponjas e tra- pos pelo chão e sobre taboas sujas de tinta e de gesso, que as engrossava irregularmente, especadas por cavalletes. E, após este casarão, succedem-se outros, em completo abandono, despidos de mobi- liário, e cujo accesso é por meio de arcos.

A este exame accrescentava o amigo Chaves al- gumas descripçÕes, lentas e ponderadas, empre- gando toda uma estranha technologia, tratando cada coisa pelo seu verdadeiro nome.

Ao tempo, o Chaves Júnior, de joelhos, em frente do caixote, collocava sobre o soalho os as- sobios. Postos de parte, estavam o Affonso Costa e o Bernardino Machado.

E o Franco ? perguntou o pae Chaves.

Parece-me que não ha nenhum feito; respon- deu o novel esculptor.

Aqui está para que serve ser notável: para passar á posteridade em assobio de barro! Que dirão os vindouros, d'aqui a um século, se fizerem chilrear estes monos ?

E, emquanto eu ruminava esta conjectura, o pe- queno Chaves ia pescando, ás apalpadellas, outros monos na serradura, mas nada de João Franco ! Ao mesmo tempo, o meu velho conhecido chamava

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tentativa a esse género de esculptura, que promettia apurar para o futuro, visto não se ter dado mal.

Imagine que fiz mais republicanos do queJoÔes Francos e enganei-me nos cálculos, pois vendi tre- zentos do dictador, e dos democratas menos de cem !

E o meu amigo ?

Esse não fizemos; esse, o auctor dos seus dias. . .

Como?! O auctor dos seus dias?!

O grande Bordallo !

Tem razão, sim ; elle lhe soube imprimir espirito ! Mas não é esse. O meu amigo Ze, o amá- vel garoto que me trouxe aqui ?

Ha que tempo se foi ! . . .

E eu que tinha deliberado fornecer-lhe capi- tães para uma sessão d'animatographo !

* #

Quando de novo pisei o Pateo do Junçã, ainda abrazador, uma nuvem negra tapava o sol, pondo mancha pardacenta no terreiro, e, no corredor ar- queado, os cabellos d'uma creança, que equilibrava os indecisos passos, abrindo os bracitos magros, parecia quererem fugir-lhe da cabeça, açoitados por improvisado golpe de vento, que levantava, em giro doido, o lixo, á flor do piso.

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Em baixo, na Triste Feia, subia de encontro a mim um anão, que me pareceu de barro : curto e de cabeça grande, como os bustos que eu acabava de escolher para a collecçao do meu amigo.

Caminhava com desenvoltura e garbo pela la- deira acima, certo de chegar ao seu destino, apesar de ter que andar o dobro do que qualquer homem de mediana estatura.

Parei, para verificar se de facto elle seria de carne e osso, se de barro, como os assobios do Franco, do Aífonso Costa e do Bernardino Ma- chado, e, depois de mirar o aborto, recolhi-me de novo ás minhas recordações, agora bem tristes, em confronto com as da mocidade, que me envolviam absolutamente e me faziam olhar de um modo vago o caminho que ia trilhando.

Ao chegar a Alcântara, voltei-me instinctiva- mente, como quem deseja despedir-se d'alguem que lhe fica seguindo os passos ; e, no cimo do monte, sobranceiro e negro, um cypreste oscillou, como que promettendo-nos uma tira de sombra, naquelle campo silencioso, que eguala todos os homens...

^. ^ ^ '''"'

^

»T.

DIZEM que João Chagas é um politico d'acção ! Eu não sou d'esse parecer, porque não vejo no auctor da Posta restante mais do que um homem de lettras, e um homem de lettras é, incontestavel- mente, um artista, e, em geral, um politico, na nossa terra, é tudo quanto ha de mais brigão com a arte !

Não conheci, nem conheço, os dois períodos po- líticos de João Chagas : o das suas verduras, e o ultimo em que está metido, porque a politica não me interessa, tenho-lhe medo, e ainda porque os homens, atravez da politica, me parecem algumas vezes tigres e eu receio conhecel-os no campo das feras !

Alem d'estas razões, João Chagas, com quem me dei mais aífectuosamente boa parte dos annos de 9o5 a 907, nunca me deu a impressão de um

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furioso politico ; bem pelo contrario, pois que, de tudo quanto tive occasiao de observar sobre a sua pessoa, não conclui senão que elle era um homem duas vezes apaixonado pelas lettras e pelas mu- lheres !

Ora, estas duas predilecções, antagónicas, se- gundo oiço dizer, com o servir um deus irrequieto e aggressivo, occupam o melhor da vida de um homem, o qual, se não for diligente e activo, tem que deixar muitas vezes as lettras pelas mulheres ou as mulheres pelas lettras ! . . .

Dada esta fatal verdade, como é que a João Chagas fica tempo para politicar ?

Nenhum, com certeza !

No periodo a que me refiro, era assim, porque o auctor das Minhas rabões andava demasiada- mente litterato e sobremaneira amoriido ! Pelo me- nos, as apparencias e por ellas, é claro, eu podia julgar auctorisavam essa conclusão.

O que é certo, é que João Chagas, por esses tempos, tudo via atravez de esplendido humor, para tudo sorria, tudo desculpava, tudo lhe pare- cia bom !

Entrava no Grémio Litterario, de tarde ou á noite, cuidado na toilette, saudava com palavras aveludadas os habitues, sentava-se num faiiteuil commodoou á mesa de escrever. Ao traçar a perna,

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mostrava a meia de seda, salpicada de phantasias de bom gosto, palpava a gravata, mirava as unhas, tratadas com pericia, e exhalava da sua pessoa um perfume fino e delicado aroma que se adquire no contacto de perfumadas rendas, junto á pelle assetinada de um corpo frágil, que enleia e faz vi- ver ditosamente !

Quando o criado se demorava com as tiras de costaneira, com os sobrescriptos sem o timbre do Grémio, João Chagas, tinha sempre uma desculpa, que envolvia numa expressiva benevolência, em perdão.

A seguir, esboçava a chronica para o Janeiro, ou traçava rápidas linhas em papel pequeno e rico, uma carta que, ao terminar, relia com expressão de completa felicidade, que metia, estampilhada, no bolso, sobre o coração, ou que lacrava e fazia partir na mão d'algum portador diligente e discreto, como que a levar um intimo agradecimento d'uma caricia inolvidável, ainda quente !

Depois do grato expediente, deixava-se cahir com doçura sobre as costas da cadeira, e, combeatitude, olhava e erguia os braços para o tecto da sala, como se estivesse representada, nalguma flor do ornamento, a sua divindade, e assim ficava alguns instantes. Num letificante Ímpeto de actividade, pedia os jornaes, cuja leitura por vezes interrom-

G

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pia, para chamar a attençao dos presentes com observações criticas :

Olhem vocês ! . . . Vejam vocês ! . . .

Das gazetas, das illustrações, das revistas, fazia derivar animadas cavaqueiras, divergentes opiniões, que tumultuavam, mas que se desfaziam pouco a pouco, com as espiraes fumantes dos charutos, por- que, em geral, estavam todos de accôrdo. D'estes debates, ficavam retumbando por algum tempo, entre os vidros das livrarias, ditos espirituosos e pi- cantes, que os desvanecidos auctores sublinhavam desdenhosamente, pedindo um copo d'agua para refrescar a gorge, ou uma sandwich para entreter a debilidade.

A' noite, na mesma sala, estavam o Chagas e os habitues, grupo resumido, affectivo. Na mesa da janella para a rua de S. Francisco, Augusto de Mello riscava as cartas para o Rio ; na mesa fron- teira, Marcellino de Mesquita retocava alguma scena d'amor áportugeia, de peça entre mãos para o Normal, ou embrulhava meia dúzia de cigarros para a viagem de Lisboa a Pontevel ; ao lado d'esta, a mesa que Chagas preferia para redigir a sua con- ceituada prosa, e, na da entrada, algum adventício, que, na mór parte das vezes, ia com a escripta a outra parte, reclamando socego ; e nos fauteuils ao meio da sala : Teixeira de Queiroz, Motta Veiga,

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Manuel Duarte, Marques da Costa e mais dois ou três dos nocturnos.

Nesse cenáculo de ethereas refeições intelle- ctuaes, discutiam-se as artes e os artistas, os livros e os escriptores, as peças de theatro e os drama- turgos, a critica tumultuava, intervinha a jurispru- dência, a porta da sala pejava-se de espectadores, e João Chagas pedia tréguas para terminar a chro- nica para o Janeiro, que o correio do norte trans- portava fatalmente cada dia, ao mesmo tempo que Augusto de Mello, certa noite, citava o nome do paquete que deixava as aguas do Tejo na manha seguinte, com esta concludente phrase :

Meus caros amigos, o portador não espera...

Passados alguns quartos de hora, concedidos aos escrevinhadores, como os impacientes lhes chama- vam, voltava-se á cavaqueira do assumpto suspenso.

Então, em espirito, cada um fazia passar num cortejo triumphal, sobre a tapeçaria vermelha e fofa do pavimento, os Ídolos das suas crenças, Ído- los cujos nomes assignam obras que se impõem : citavam-se dos poemas os versos notáveis ; synthe- tisavam-se as obras-primas das artes plásticas ; fal- lava-se dos grandes músicos, notando-se os trechos mais apreciados das suas composições ; recorda- vam-se, pesadamente, as conceituosas phrases dos grandes tribunos. Como impellido pelas molas da

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cadeira em que estava sentado, um dos juriscon- sultos exclamou :

O grande feito de Marco António é o ter no Fórum, com o maravilhoso poder da sua palavra persuasiva, dissuadido o povo romano da falsa ideia de que o haviam convencido os algozes de Júlio Cé- sar. Quando o cadáver do vencedor dos Nervios dei- xava a praça onde se decidiam as contendas ma- gnas, o povo vingava a injusta morte de César, in- cendiando as habitações dos assassinos ! A Pa- lavra e a Justiça podem tudo ! . . .

Alli, como num animatographo, se faziam passar os paizes mais adeantados do m.undo, com as suas subdivisões mais cultas e mais em evidencia. Não esquecia o valor do trabalho pertinaz dos historia- dores, dos archeologos, que continuamente eviden- ciam os nomes gloriosos dos grandes homens d'ou- tras eras. Aqui, João Chagas protestava contra as velharias, queria coisas modernas, ideias novas protesto frequente da sua opinião, mas que em nada alterava o bom humor das animadas cava- queiras.

Quasi sempre a melhor parte d'esses serões era absorvida pelo ideal litterario de João Chagas a obra do Eça e, nessas occasiÕes El dos de majo, como dizem os nossos vizinhos ! . . . Mal se alludia a este escriptor, o diapasão do vozerio au-

gmentava ! Todos tinham uma opinião prompta, so- lida, que a um tempo queriam expôr e defender ! Um tiroteio cerrado ! Os nomes de Herculano, Castilho, Ramalho Ortigão, Júlio Diniz, Rebello da Silva, Fialho d'Almeida e outros, troavam como sons de descargas eléctricas entre montanhas ; nin- guém se entendia, tudo misturado, nada de nitido, vozerio a que acudiam os frequentadores da sala de leitura, assomando á porta, com as revistas na mão, o Dr. Ansur, Silva Bastos, Sousa Pires, Ma- nuel Carneiro, Seruyas e outros, espavoridos,

E, vai-se a ver, a algarvia resultava apenas da febre explicativa e da exuberância de argumentos irrespondiveis, e concluíam accordando : «que as qualidades de cada um d'esses escriptores eram grandes, mas differentes, portanto sem comparação plausível ; que era balda entre nós comparar o va- lor intellectual dos homens, como se d'estes se me- disse a força physica, e que isto de ter mais ou menos talento não se podia avaliar como socos em dynamometro, como egualmente o instrumento não marca qualidades compensadoras, e, emíim, que, completo, Deus».

Nalguns destes serões, tão vividos e solicitamente Utterarios, sem programma nem reclames, Cha- gas e Motta Veiga faziam a leitura de artigos ma- gistraes de Eça de Queiroz, ainda por arrebanhar

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em volume. Chagas, quando lhe tocava a vez de exprimir prosa do auctor de A Relíquia, illumina- va-se,como theista a converter tribus descrentes com os dizeres das sagradas sentenças do seu deus !

Após estas justas e reflectidas homenagens, ou- tras vinham coroar os iniciadores de enormes feitos scientificos e, por fim, a critica censurar as injus- tas criticas das ares de curtas azas e comprido bico, que tentam picar águias e outros empennados de voo largo, com detracçÕes malpiadas, e que, quando Deus queria dizia o orador cahiam sem alento sobre monturos.

A estas palavras, applaudidas por todo o auditó- rio, outras se seguiam, não menos certeiras e como dardos, assim atiradas :

Deixem-me dizer-lhes, meus amigos : isto suc- cede em toda a parte ; e, se com mais frequência nos paizes pequenos, como o nosso, devido é, prin- cipalmente, aos escriptores ciumentos, que vêem um concorrente em cada homem de lettras, e, so- bretudo, aos litteras cuja obra nunca chega a ser grande, nem mesmo a de diíFamaçao. D'elles, as comparações entre livros da mesma indole ou de assumpto congénere, para fundamentar accusaçÕes de plagiato, a que, como sabem, nem o Eça es- capou ; d'elles, a cançada mas deprimente asser- ção : que tal escriptor poderia valer, se escrevesse

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em portugtiei ^ d'elles, o verem na obra alheia a imitação da sua maneira ; d'elles, as estafadas clas- sificações de cretino, medíocre e outras semelhan- tes, com que tentam desqualificar o trabalho dos que não fazem parte da sua envenenadora grey. E, quando não podem blasphemar, rebentam, como bolhões pestíferos. Meus amigos, ponho ponto, por- que não quero sahir da norma estabelecida : Aqui não se criticam processos.

Assim duraram essas inolvidáveis noites até á primavera de 907, em que João Chagas começou a rarear no Grémio Litterario.

Pouco a pouco, as ausências espaçaram-se mais e mais, e os do cenáculo interrogavam-se :

Onde estará metido o Chagas ? Que é feito do Chagas ?

Escrevia-se ao Chagas, o Chagas não respondia, e apenas noticias suas se obtinham, pescadas nas entrelinhas das chronicas do Janeiro, chronicas que iam perdendo, dia a dia, a feição litteraria e adquirindo paulatinamente o sabor politico. Posto que, para alguns, a ausência do homem de lettras era mais questão de fe7nea concreta^ que òq fêmea abstracta, para outros era caso decidido que o presidente das sessões de S. Francisco estava no- vamente atacado da maldita doença eruptiva, que havia apanhado quando mais novo. . .

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Não ha duvida, dizia um. Está outra vez poli- tico. E' mais uma fera e menos um artista !

Eia ! o que ahi vae ! . .

O maior mal da nossa terra vem da politica ; a politica atrophia tudo e todos. consegue de- senvolver-se o que vive longe d'esse mal damninho. Os homens, nesse meio são poucos os que se não prevertem, são raros os que não perdem o caracter, e rarissimos os que conseguem sahir d'esse tene- broso mar sem maculas dos cachopos onde batem, mar onde nunca ha bonança, onde as aguas nunca são cristalinas. Meus caros amigos, a politica é como a praga dos gafanhotos que destroem as searas do pão. Enfraquece os homens, como o es- calracho enfraquece os arbustos e os mata, por mais viçosos que sejam os rebentos, em terras fortes. A politica tem garras que fazem feridas nos homens e no paiz, que não ha unguento que as sare...

Homem, você socegue ; se assim é, o Chagas, ao menos, para os amigos, sempre ha-de encolher as unhas.

Maldita politica, que acabaste com as nossas deliciosas cavaqueiras !

E continuou, cheio de rhetorica sentimental :

Oh Pátria, Pátria, mãe de mães, tu, que tão carinhosa tens sido para com teus filhos, pede-lhes.

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com a tua doce expressão, illuminada pelo teu bri- lhante sol, que se entreguem a ti, que bem pre- cisas dos seus aíFagos ; pede-lhes, sim, a recom- pensa do muito que lhes tens dado !

Quando concluiu a tirada declamatória, voltou-se para um dos habitues^ que mais sabia ouvir, do que bem fallar :

Que diz você, que não via em João Chagas mais do que um homem de lettras, um artista ?

Inda persisto na minha. . .

UTOMOVEL

AO meio dia, embarcávamos, eu e um amigo, no Cães do Sodré.

O landaulct entra facilmente para a coberta do vapor, que faz a travessia entre Lisboa e Cacilhas, de meia em meia hora.

Dia de Reis, festivo, Hndo creador !

O barco larga da ponte, numa trepidação agradá- vel, corta as aguas, aproando ao pontal da outra banda.

Gaivotas abanam-se com seus leques de pennas brancas, ou estendem as guias nos voos largos. Pairam umas, outras embicam á babugem da pes- caria incauta, outras, ainda, descançam da faina no balançar suave das gordas ondulações do Tejo, que, áquella hora, rebrilha, como cristal liquido num tanque immenso.

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Da curta viagem atraca o Lisbonense, e, após o desembarque dos passageiros, o landaiilet subiu a prancha e seguiu num andamento modesto, em- quanto cobriamos os joelhos e se marcava a hora doze e vinte minutos.

Extraordinário dia ! Glorioso dia ! exclamá- mos. Eu, não sei com que expressão ; a do meu amigo era radiante.

Dias como este proseguiu elle nunca os vi, nem na Europa nem na America !

Não se imagine que a apreciação é d'um por- tuguez.

A pouco e pouco, a marcha do vehiculo augmenta.

Passada a Cova da Piedade, a paisagem attrahe, exuberante de viço e de frescura.

A estrada, 'Como faixa de linho crú, serpenteia pelo meio de perfis que projectam sombras capri- chosas. Por toda a parte, sob o azul immaculado e luminoso do ceu, matizes de harmoniosidade ténue, sem perderem a intensidade dos seus grandes va- lores. De um lado, serras alcantiladas, gigantescas e avermelhadas saibreiras, sulcadas d'alto abaixo; do outro, terras quentes, verduras baixas. Olivei- ras de um verde acinzentado, em disposição casual, descem as collinas, e, nos promontórios, perto como longe, erguem-se pinheiros, perfilados como columnas de exercito.

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. ■» * . ■íitf-!.

Esta s3-mphonia de cambiantes, luz e sombras refracçÕes opalinas, como seda furta-côres.

Mas logo outros aspectos surprehendem, tão ra- pidamente, como rápida é a velocidade do transporte, furando a paisagem in- tima com a rapidez de uma flecha expe- dida pela expansão de forte e opprimido arco, emquanto, ao longe, o panorama se deixa admirar sem turbações, o Tejo, a alvejante casaria de Lis- boa, aldeias e logarejos, 'l-íi-^' isolados ou reproduzíndo- se nos espelhados braços do rio, que entram no Sei- xal, na Arrentella, po- voações mais abundante- mente banhadas, quando nas aguas vivas.

Depois, nas planícies, vastos pinheiraes, dando arrendadas sombras, der- ramando pura seiva, ou choupos altos, ladeando rectos kilometros de planos e suaves caminhos, cuja perspectiva parece observar-se atravez d'um cano de espingarda, e que o automóvel transpõe como uma bala, para caminhar mais veloz, em campo aberto.

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A vista percorre os campos ; não ha terras ma- ninhas ; tudo arroteado. Raro vêr selvas bravias, raro as que ficam de pousio, raro o arbusto ma- ninho ; tudo cresce e se avantaja.

Com suas casitas brancas, dominadas por cam- panários brancos, se vêem a Aldeia de Paio Pi- res, Coina, Corroios e outros grupos de albergues ruraes, cercados de arvoredo e pahssadas, tal qual repregos scenographicos.

Seis de janeiro, e já, nos prados, precoces flori- nhas amarellam e branqueiam, como prenuncio de primavera ! O ambiente ri, com um riso que con- vida a viver risonhamente.

E serem tão poucos digamol-o os lisboetas que conhecem e gozam os variados aspectos d'esta estranha e empolgante paisagem, a pouca distan- cia da capital !

O' alfacinhas, isto de fa^ei^ a Avejiida periódica. e obrigatoriamente, numa atmosphera poeirenta, exhalando aromas de excremento de bestas e de censura pegada, é asneira, faz mau sangue, irrita o espirito e enruga a testa. Vós, que tendes ma- gníficos meios de transporte, tirados por soberbos cavallos e possantes motores, largae o picadeiro e vinde vêr a natureza purificadora e bem criada, pois, ahi, até a passarada vos desconsidera. . .

Nestas considerações nos levava o automóvel in-

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truso, producto moço do engenho humano, e se in- ternava, pesquizando o que o mundo tem de mais velho, com roncos d'um som inarticulavel com a sua mocidade, prevendo e prevenindo, arrogante- mente, numa curva, algum viandante serrano, alheio ao progresso e despreoccupado.

O meu companheiro mandou parar. Estávamos em Azeitão.

Subimos alguns degraus, que dizem para o ter- reiro do velho palácio dos duques de Aveiro, com seu pelourinho.

Uma hora de historia, de profundas recorda- ções ! Foi aqui preso, numa negra noite de novem- bro, D. José Mascarenhas, oitavo duque de Aveiro,

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decapitado no cães de Belém, no janeiro seguinte de 1759, como se sabe.

está na fachada principal do palácio, sobre a janella predominante e central, arrasado, o escudo da nobre familia, que tinha o direito de nomear, senhores de baraço e cutello, e que, por implicada no attentado contra a vida de D. José I, Pombal tentou exterminar.

Na sala de baile e no guarnecimento de interes- santes azulejos, talvez dos fins do século xvi, ha, num dos vãos, entre duas janellas, a falta de nove azulejos, que completavam a parte central da com- posição, onde presumo estaria, antes do sinistro espectáculo de Belém, o escudo a que alludi.

A caracteristica vivenda, que tem passado por differentes vicissitudes, pertence actualmente ao sr. Oliveira Boal, cujos filhos nos receberam com ama- bilidade e nos mostraram os azulejos d'aquella e das mais salas do histórico palácio.

D'aqui mais uma vez os cumprimento, muito agra- decido.

Nessa Cintra do Alemtejo, como lhe tenho ou- vido chamar, com acerto, está a decrépita Baca- Ihôa, antigo e solarengo retiro dos Condes de Mesquitella, hoje vasio d'almas, mas ainda cheio de arte.

A este museu cerâmico de azulejos e esculptu-

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ras, ao palácio do sr. Boal, á artística vivenda que habitou o grande homem de sciencia, Manuel Bento de Sousa, conservada por seu filho, o dr. António Formigai de Sousa, e cujos azulejos que decoram as salas são notáveis ; á casa de Galhariz, e outras mais, perímetro que comprehende a Villa Fresca e a Villa Nogueira, para onde, outr'ora, no- bres de Portugal iam abrigar-se e descançar, fugi- dos aos calores da capital e ás cerimonias da corte, juntem-se extensas e bem amanhadas terras, arvo- res de fructos finos, arvoredos sombraes de gran- diosa ramaria, e veja-se quanto é aprazível a ex- tremenha e dominadora Azeitão.

De novo nos installámos na commoda carrosse- rie, subindo a manta sobre os joelhos. A' cautella, concheguei o chapéu, e, emquanto o meu amigo praticava os mesmos cuidados, o pelludo chaitffeur punha em andamento o automóvel, com três ron- cos de corneta, para afastar do trilho umajc^wwosíi, amarella e estúpida.

Proseguimos, cortando o ar, ao mesmo tempo que a paisagem corria para nós, com reciproca anciã.

De Azeitão a Setúbal, desce-se, mais ou menos. A' mão sinistra, sobre a montanha, a capellinha das Necessidades, branca como veste de noiva, e, num plano mais afastado, sobre o pincaro d'outra

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montanha, o Castello de Palmella, ostentando as suas ruínas, envolto numa meia tinta azulada.

D'este ponto, o mais elevado da estrada, vê-se uma vez mais Lisboa, agora coroada pela serra de Cintra, num tom fulvo, que parece vêr-se por trans- parente gaze d'um azul claro.

A' mão direita, o inconfundível sello da paisa- gem portugueza, num que outro cabeço, como cris- tas brancas, velas em cruz, gordas de vento, moendo pachorrentamente o pão de cada dia, ao som de harmoniosa e interminável zoada.

O caminho ajuda ; e, tão depressa como o dizer, se transpõe o Valle de Alcube.

Rápido, começam a apparecer vestígios d'agglo- meração humana, modestas notas de civilisaçao : adultos, creanças, estendaes de roupas variega- das, animaes domésticos á gandaia, que se assus- tam e balburdam ; o gallinaceo, azas abertas, corre indeciso ; os condemnados grunhem ; os cães ladram e levam-se como lebres, á estribeira do automó- vel ; começam a apparecer vendas escancaradas, o bulício augmenta, vêem as ruas, a cidade Setúbal !

Esta é atravessada em solavancos, voltas rápi- das, curvas apertadas, que os pneumáticos suavi- sam, com a sua elasticidade. A corneta ronca com teimosia, a garotada grita, gesticulando, atirando com os bonnets e barretes á passagem do vehiculo

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e com tal expressão o faz, que deixa em duvida se a manifestação é amiga, se hostil !

O chauffeur, sem hesitar, enfia pela estrada que leva a a Outão.

Quando nos defrontámos com a magestosa e tranquilla bahia do Sado, que parecia dormitar sob uma cobertura de vidro coalhado, o meu soli- cito amigo, de pé, braço estendido, indicou meio circulo, com que abrangia todo o scenario, e gritou :

Qual Nice ou Route da Comiche, qual lago de Como, qual phantasia, qual historia ! Isto é uma parte do Paraiso, isto é, simplesmente, a gloria, num clima de i5 graus em Janeiro!

E, com duas palmadinhas da sua mão esquerda no meu hombro direito, accrescentou :

Vocês nem sabem o que teem !

E o incansável Braiier^ com força de vinte ca- vallos e fôlego de outros tantos gatos, cortava a pittoresca paisagem, pela estrada, a meia encosta, que margina docemente o lindo Sado.

Depois, numa situação invejável, sobre as aguas, a Casa da Commenda, a que o seu proprietário, o conde de Armand, chama : Mon Paradis, cujas galerias alpendradas dominam o grande lago numa ampla expansão de horizonte. Nas, terras adjacentes, logradoiros ajar- ■'

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dinados e um vasto viveiro de palmeiras, verdes, com reflexos frios, azulados.

Após mais algumas curvas pela declividade da estrada, estávamos em Outão, terminus da nossa ida.

A volta fez-se d'uma tirada.

Logo ao primeiro kilometro, cruzámos com um Peugeot^ cheio de senhoras, e fora, ao lado do ma- chinista, um senhor. Estavam como numa tribuna, admirando o supresito glorioso que o Creador dei- xou ás creaturas, com a sua grande obra Agua, Terra e Luz !

O meu instruído amigo, qu:; rende culto á Arte, que entende de medicina e de mechanica, disse :

São galantes, o homem é medico, a machina de força superior á do nosso Bra:{ier trinta ca- vallos. Vieram de Lisboa e voltam para lá, como nós.

Quanto a ter o motor mais força, pouco impor- ta ; se não tem fôlego de gatos, não passa adiante ! Estive para responder, o que não fiz por prudên- cia.. .

Num estremecimento quasi ligado, os pneumáti- cos rolavam pelo macadam tão acceleradamente, que davam a illusão de tambores mechanicos a pu- xarem por larga correia d'anta, a cujas orlas se prendia toda a paisagem próxima.

E assim corriam para a minha observação, invertidamente, os mo- tivos aldeãos e campestres que, pouco antes, se tinham insinuado tão grandemente. Ao fundo, o Tejo e toda a sobranceira casaria, esse vasto burgo, o meu burgo, scintillante de vidrarias, dispunham-se para vir ao nosso encontro, como co- lumna de couraceiros, num sopeado e surdo passo, sobre tapete azulado.

Quando deixávamos Villa Nogueira e desciamos para os brejos de Azeitão, senti que a velocidade do automóvel era desusada e que tendia a accele- rar-se ainda mais.

Com a expressão d'um fugitivo, o chauffeiir olhou para traz. De tal maneira me impressionou o seu olhar, que me voltei, cheio de curiosidade. Era o automóvel com que havíamos topado á sahida de Outão que nos seguia, e se propunha tomar a dian- teira.

Então, nas rectas, nos caminhos planos e pelas descidas, tive a impressão de que o nosso landau- let não tocava no solo, voava ! Horrorisci-me tre-

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mendamente ! Lembrei-me de que o travão podia partir-se, os pneumáticos podiam rebentar e, de que, em qualquer d'estes casos nem a alma se me aproveitava, e maldisse o ter-me conciliado com tal meio de transporte ! Recordei a minha recusa ao automóvel e á companhia de Frederico Betten- court, quando este amigo, amavelmente, veio a Lisboa, para me levar para Santarém, e eu, por pre- caução, optei pelo ronceiro mixto das 9 e 20 da manhã.

Aterrorisado por uma sobreroda, que me deslo- cou desagradavelmente, balbuciei :

Ai I meu rico Pai do Ceu, Nossa Senhora, valha- me Deusl Jesus, Maria José ! E, por achar insuífi- ciente a minha breve e atrapalhada supplica, evoquei o dia um de novembro, com exaggerado requeri- mento.

Convencido do grande susto em que eu ia sus- penso, de repente, com uma cotovellada, o meu amigo berrou :

Um azulejo naquella parede: lyBi, Corroios. Tome nota !

E continuou a troçar de mim com judiarias, con- cluindo por attribuir o meu receio á minha fraqueza. Que o que eu tinha era fome ,• e, certo da recusa, passou-me para as mãos o cartucho das h^ioches^ inda por encetar, que, com surpresa sua, eu es-

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perando a morte comi, desde a primeira á ul- tima!

Quando acabei de devorar os apetitosos e fofos bolos venezianos, declarei ao meu amigo :

Isto é de familia. Houve uma senhora da mi- nha gente que, quanto maior era o desgosto, mais a apoquentava a vontade de comer !

O destro chaiiffeitr volta-se uma vez mais, pro- curando ver atravez da nuvem poeirenta que a ver- tiginosa carreira do vehiculo levanta, e nada de Peugeot !

Momentos depois, o furioso Braiiev encosta os pneumáticos á cancella do embarcadoiro de Ca- cilhas.

Ao entrarmos no vapor, o radiante sol, o sol por- tuguez o meu sol, como eu lhe chamo, porque nunca o vi tão resplandecente e meigo fora de Por- tugal — descia a beijar o Oceano ; e, quando o Lis- bonense se poz em marcha, atravessando o soberbo Tejo na imponente Natureza dois quadros sur- prehendiam, deslumbravam.

A' esquerda, o horizonte, como um diadema de fogo, marcado ao centro por um rubi enorme, san- guíneo, de brilhantes e trémulos raios, reproduzia-se em cada ondulação do mar palpitante, numa orgia d'oiro derretido !

A' direita, a lua, pálida, contrastava, sahindo va-

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garosa das aguas. Parecia uma medalha de prata fosca com lavores foscos, desprendendo-se de um comprido fio de pérolas, que se balouçava á tona d'agua, descrevendo uma entrecortada recta, do disco até ao costado da embarcação. O espectáculo era tão grandioso, que até os aturdidos fazia exal- tar.

Uma passageira, que decerto jantara de garfo na Cova da Piedade, dizia para os seus alegrados companheiros, num riso alvar, gargalhado até ás orelhas :

Isto é miinto ca. . .ti. . .ta !

Na A

BERTURA DE UM V^ASINO

C.

ABRIU, ha dias, nas salas da Empreza Liquida- dora, onde, durante alguns annos, se vende- ram raridades archèologicas e objectos d'arte, o Grande Casino de Paris.

O negocio das antiguidades cedeu o logar ao negocio das mode^^nidades. As salas modificaram-se, a ornamentação renovou-se, e, de tudo que era ve- lho no espaçoso estabelecimento das onze portas na Avenida da Liberdade, apenas ficou o empre- zario, que foi o Libório de hontem e que é o Li- bório de hoje.

Este emprehendedor, que, ha pouco mais de três mezes, ao dirigir do alto da sua tribuna as vendas em leilão, dava as três pancadas no tan-tan das adjudicações, ordena agora electricamente o principiar de uma sessão, com musica, bailes, mo- nólogos e cançonetas.

Esses espectáculos, exhibidos por artistas de va-

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rias raças, entre os quaes ha mulheres bonitas, frescas e fascinadoras, dão expressivamente conta da vida dos cafés cantantes da capital franceza, onde se vive muito em pouco tempo, com embria- gante alegria.

Isto se propôz o Libório dar-nos em Lisboa, com a nova casa de diversões, que se inaugurou no dia 27, ás 4 horas da tarde, com bello sextetto, chá e uma galante polyglotta, subida no seu comptoir, donde domina os homens e onde folheia um ro- mance de Bourget.

Passadas as primeiras, barulhentas, impressões, o escrevinhador d'estas linhas, descança a uma das mesas do restaurante, toma uma chicara de chá com leite, a convite de um amigo, a quem agrada o conjuncto da installação, e, entretanto, divide toda a attenção pela lúcida critica do amável compa- nheiro e pela parte decorativa que embelleza o re- cinto.

Tudo simples, de uma tonalidade clara e agra- dável. Espelhos em profusão, com ornatos de cris- tal pendentes da parte superior, e cujas borlas e pingentes são outros tantos focos eléctricos, que as reproductoras chapas multiplicam.

O palco, pelo qual o Libório promette fazer pas- sar todas as celebridade cantantes, dançantes e pa- pagueantes, das quaes estão contractadas : La

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Bella Juanita, Las Pas- tor's, La Camargo e Na- dege, é fechado por um farto cortinado de velludo vermelho, emmoldurado por uma elegante deco- ração de relevados orna- tos e mascaras, a branco e oiro.

Nesta altura da nossa observação, perguntei ao amável companheiro :

Não acha que, do mesmo modo que está decorado o proscénio, de- via estar toda a sala?

E, ainda para me fazer comprehender melhor, chamei egualmente a sua attenção para o bem que fazem os simples lavores dos capiteis, nalgumas das columnas que susten- tam as grandes esteiras do tecto.

Certamente, respondeu o amphytriao. Um friso junto á sanca, um simples alisar e a substi-

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tuição do papel que forra as paredes por ligeiras pinturas em meias tintas ficaria melhor; não ha du- vida.

E, proseguindo :

Deixe-me dizer-lhe, meu amigo, o que está feito não é desagradável, e, servindo-me da phrase que usamos na província: «está muito asseado Ainda assim se o negocio pegar o Libório tem ideia de enriquecer a decoração.

Saiba que estou com vontade de jantar e de ficar para a noite. Desejo ver a illuminação, que deve fazer bom effeito, e o espectáculo. Dizem-me que o Marques do Chiado, que é quem fornece o bufete, tem vontade de servir bem ; vamos ver o menu.

O tne?iú e a polaca.

Qual polaca ?

A polyglota.

E' interessante.

Tem o porte de uma estatua clássica, apesar de a figura ser mignonne.

Costas direitas, perfil impeccavel, peito firme e proporcionado.

Veja, no espelho a que está encostada, a vo- luptuosa nuca.

Sabe posar !

Ella vende livros?

III

Não ; Bourget, quando não quer vêr os admiradores . . .

Começou a lêr. . .

Vamos jantar ! . . .

Emquanto procurávamos mesa d'onde dominásse- mos todo o movimento do restaurante, interroguei o meu viajado amigo :

por fora, esiãs polj'glotías devem ser muito caras. . .

Conforme. Isso depende menos do dinheiro do que da edade dos homens que as pretendem. Alphonse Karr disse, parodiando a phrase evange- hca : «Aos pobres de dinheiro, pertencem os reinos do amor ...»

Outubro 1905

UM dia de outoinno, depois de as primeiras aguas haverem limpado a paisagem e feito brotar flores ; uma ermida caiada, reverbame de sol, com seu luzidio registo de azulejos, recortando- se na atmosphera intensa de anil ; Bellasdonas, como lirios arroxados; os vermelhos Casadinhos; os brancos Junquilhos ; as Maravilhas-do-meu-ve- Iho ; as Cantarinas, amarellas como oiro ; as Des- pedidas-de-verão, que apparecem a agradecer as primeiras gotas dos brandos chuveiros, tépidos pelo estio que abalou ; um sino, badalando no respectivo campanário ; foguetes, chamando, com seu estalar sêcco, á festa rija são, em conjuncto, elementos de alegria, que a villa portugueza pôde offere- cer. Sem o sino, todo o colorido arraial perderia metade do seu valor. «Festa sem sinos, em Por-

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tugal, não é festa». Assim o ouvi dizer a um por- tuguez illustre.

Ninguém para tocar sinos, como os portuguezes; ninguém para os comprehender, como nós, portu- guezes. Creio, mesmo, que jamais houve paiz que gastasse tanto dinheiro em sinos, como Portugal, nem monarcha algum, como D. João V, que tanto dispendesse em adquirir sinos, chegando a mercar dois carrilhões para o mosteiro de Mafra, por não achar bastante um só.

Haverá algum luzitano, que não tenha ligado ás recordações da mocidade certo repicar de sinos do bairro onde passou os verdes annos ? A mim, não me esqueceram ainda os da torre de S. José, em que o sineiro exhibia, entre as modinhas do seu reportório, a Maria Cachucha !

Que contraste, o dos sinos, segundo a hora em que se fazem ouvir ! Nada de mais risonho que as torres parochiaes de Lisboa, avisando a população de que o dia é commemorativamente festival, nem de mais profundamente pavoroso que o toque a re- bate, depois de o sino haver indicado o local d'um grande incêndio, em noite negra e desabrida I

Nada, como os sinos, para traduzir os dois aspe- ctos fundamentaes da humanidade a vida e a morte.

Ha, porventura, no dia, momento mais respei-

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toso, mais cheio de poesia, que aquelle em que Millet se inspirou para pintar a sua obra-prima, L'Angelus, hora da Annunciação, hora da Ave Maria ?

Essa hora, que, mal o disco transpõe o horizonte, é recordada aos portuguezes por três badaladas que os sinos tangem, e cujas harmonias, pouco a pouco, se vão extinguindo no caminho do sol, é a hora em que acaba a labutação dos campos e a luz solar, é a hora que annuncia a vinda do Senhor.

O sino gothico não tocava, não dizia nada, e creio que haveria muitos annos que o não faziam soar tristezas nem regosijos. Absolutamente discre- to, em attitude de gymnasta, fazendo o christo.

Ha doze annos, quando olhei para a torre do ex- tincto mosteiro de S. Bento, a dois kilometros de Évora, vi um sino, que, apesar de ser do feitio dos outros sinos, fez-me bater o coração !

Não foi sem custo que consegui approximar-me d'elle. Então, fiquei maravilhado : era um sino go- thico, de bello e delicado lavor, que a distancia a que o havia visto não deixava apreciar.

Que larga historia esse formado bronze não nos poderia contar ! Quasi cinco séculos estavam ali representados, como o attestava a data, nitidamente relevada ! Toquei-lhe levemente, com o lápis com que copiava a era, que marca o ultimo periodo da

8

ii6

ihteressantissima e religiosa arte gothica. Respon- deu-me baixinho, prolongadamente, como se reper- cutisse um côro beatifico de monjas, arrecadado por muitos annos:

Ainda aqui estou, porque sou pesado e vivo fora da fácil acção dos vândalos . . .

Eis os dois desenhos que tirei :

LseCCCCs]

Mais haveria que estudar, se não tivesse sido surprehendido e não temesse chamar a attençao para tão extraordinária reliquia. Desci, com ideia de voltar, o que não pude fazer até hoje.

O mosteiro de S. Bento, de freiras de S. Ber- nardo, foi fundado em 1196, e deve ter sido termi- nado no tempo de D. João II, época posterior á fundição do sino o mais bello que tenho visto.

Embora da fabrica não restem vestigios gothicos que se imponham a uma rápida visita, é de crer que

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existam, tanto d'este, como do período românico, em que o convento foi fundado.

Recommendo a algum curioso, que viva mais perto do mosteiro de S. Bento, este exemplar, que é digno de ser estudado em todos os seus pormeno- res—não vá o diabo derretêl-o, ou cosa poj- el estilo.

Por conseguinte, peço, a quem mais directamente competir, vigilância sobre este documento, que re- presenta um valor, muito mais alto para a historia da arte, que para reduzir a moeda corrente. E' tempo de acabar com o habitual desleixo. Os que nos succederem, têem o direito de vêr dentro do seu próprio paiz alguma coisa de bello e de esti- mável do que possuímos.

Perto do sino, objecto d'esta descripçao, ha ainda um outro, datado de lySS.

A

MOR?.

A' mesa do restaurante, mais do que comiam, como pombo c pomba arrulhavam. Elle, um ingénuo portuguez ; ella, uma formosa andaluza ; elle, dominado ; ella, dominadora.

Cabellos negros, olhos negros, cercados de pes- tanas e sobrancelhas negras. Uma leve e assetinada pennugem avelluda-lhe a tez morena : um completo tição d'amor escaldante. Feições soífregas, expres- são insaciável.

Os dedos das suas delicadas mãos pareciam fu- sos para torcer homens.

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O seu fallar harmonioso dizia : Assim melo- peiam cânticos os anjos nas regiões celestiaes.

Tinha tregeitos qne enredavam, e, com o arfar do peito, levemente encoberto, quasi deixava sem respiração o moço, cheio de mollura.

Porquê ? Porque era que a muchacha enlaçava com tanto ardor e seducçao esse portuguez, que não era para que digamos nem um bello moço, nem um homem forte ?

Como se explica tanta volúpia, tão cerrado cerco, a um dengoso sem attractivos, sem fogo, emquanto ella recordava a lenda do sugante vampiro ?

Quando ao fim d'essa refeição, composta de vida e de fraqueza, ou, talvez, melhor : de fome e pouca vontade de comer o fraco mancebo surgia do torpor em que jazia, bateu palmadas, pediu a conta, e, nesse momento, no dedo minimo da sua mão esquerda, scintillou um diamante, de fina agua . . .

No livro «Cerâmica Portugueza», ha pouco pu- blicado, commetti uma falta que, apesar de não ser importante, carece de explicação.

Na segunda chamada da pagina 65, quando tra- tei da Real Fabrica do Rato, prometti fallar, na parte iii, dos azulejos da quinta acima referida o que, por esquecimento, não cumpri.

Era meu propósito pagar a divida num addita- mento áquella obra. Reflectindo, porém, resolvi sa- tisfazer desde o compromisso, liquidando com os leitores da «Cerâmica Portugueza» a alludida falta.

O que então tencionava dizer, era um resumo do que hoje escrevo sobre a quasi desconhecida, mas importantíssima, obra de azulejos, que, com toda a sua sumptuosidade, vive recatada, sem fingida mo- déstia, dentro de muros, no Paço do Lumiar.

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*

* #

As creaturas que se dedicam ao estudo da arte, em qualquer das suas expressões, têem momentos de goso, que fortemente compensam do trabalho mental gasto em comprehendel-a !

Estar, pois, em contacto com uma obra de arte, tanto monta familiarisar-se com os segredos das mais delicadas manifestações de espiritos supe- riores. E' viver remunerado superiormente !

Sem me dar a pretenção de estar absolutamente identificado com todos os ramos da arte, é certo que não me são extranhos, pois que em volta d'el- les tenho vivido, e quasi exclusivamente a elles te- nho dedicado o melhor quinhão da minha actividade. Por isso, como humilde perscrutador das obras de arte, da mais elevada á mais subalterna, tenho ex- perimentado a sublime sensação de as comprehen- der.

Antes de descrever os azulejos do jardim d'essa quinta, é necessário dizer como fui alli parar :

Ha tempo três annos talvez batia eu á porta do sr. Visconde de Castilho, para que me ensinasse o caminho mais direito que me levasse ao fim de uma das minhas pesquizas sobre a velha Lisboa.

A porta abriu-se, e tudo me foi explicado, com

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aquelle interesse e sinceridade com que os grandes sabedores elucidam quem de facto deseja e precisa saber.

Depois de uma larga conversação, sempre inte- ressante, pela parte do erudito portuguez um dos maiores patriotas que me tem sido honra conhe- cer — sahimos em direcção ao Paço do Lumiar, que dista da casa do auctor da Lisboa antiga um kilometro, approximadamente.

Peio caminho, o Visconde de Castilho explicou as festas a que tinha assistido na sua vizinha Quinta dos Azulejos, referiu-se á amabilidade dos donos da casa, e alludiu com enthusiasmo aos azulejos do jardim.

Momentos depois, estávamos em presença do mais extraordinário conjuncto de arte decorativa, e eu experimentava a mais bella impressão que pôde offerecer a polychromia esmaltada da faiança presa ornamental !

Durante algum tempo, não pude articular uma palavra ! Deparava-se-me, realmente, todo o scena- rio que d^antemão havia phantasiado, e corria em todas as direcções, na possibilidade de encontrar um ponto d'onde se divisasse, em conjuncto, o esplendoroso effeito. O meu introductor, e a gen- til Senhora a quem havia sido apresentado, se- guiam-me, para me di/crem alguma coisa.

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Cansado, como acontece sempre a quem muito quer ver em pouco tempo, esfreguei os olhos, para recomeçar exame meticuloso, quando ouvi á pos- suidora de toda aquella- maravilha :

São hollandezes. Contestei, reverentemente :

São portuguezes, minha senhora *.

Por que phases terá passado a minha imagina- ção para, como alem disse, poder antever obras de arte que jamais havia admirado ?

O silencio, devido á lucta com o meu espirito, no primeiro quarto de hora na Quinta dos Azulejos, não foi motivado por estranhar o espectáculo a que me vou referir ; teve, pelo contrario, como causa o não me parecer aquella a primeira visão !

1 Azulejos hollandezes, em Portugal, se encontram com relativa facilidade os de motivo isolado em cada azulejo um assumpto. Dos de larga composição, cujos assumptos abrangem porção maior ou menor de azulejos, tenho como indiscutivelmente hollandezes os que forram a parte inferior das paredes da egreja do convento dos Cardaes de Jesus, em Lisboa. Estes, não estão authenticados na faixa, junto ao pavimento, do lado da Epistola, com <^^, 'y/^ ^ ^ a assignatura (até agora inédita), tal ^ "* como vae reproduzida, como diíFerem S^^^ ^yTT^yr.^r^-^^^' absolutamente dos das nossas fabricas, pelo caracter e pela maneira de compor e de pintar.

12'

Cd

O

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Por que poder suggestivo me não surprehendeu tão grandioso espectáculo ? Não communicarão os homens que rendem culto á arte com espíritos sobrenaturaes, hariolos, adivinhÕes, para presenti- rem o que d'elles vive occulto ? Não o sei, nem me pertence a mim estudar a psjxhologia de taes phe- nomenos. O que é certo, é que não foi a primeira vez que tal me succedeu !

Noutros pontos, fora da minha terra, por onde jamais havia passado, em frente de obras de arte com que jamais havia communicado, ellas não me fallaram com intimidade. Este phenomeno é se- melhante ao que se com as creaturas. Quantas vezes as não presentimos atravez de muralhas, para, momentos depois, depararmos com a realisação d'es- ses presentimentos? Não se chamará a isto adivinhar?

Quantas occasiões abordámos artistas pela pri- meira vez, para nos separarmos d'elles como ve- lhos amigos ! E' que a arte une os seu devotos, faz com que elles se cordealisem e vivam com tal in- tensidade, que poucos momentos bastam para lhes dar a noção de uma longa vida, d'uma intima con- vivência !

«A arte é dos artistas» palavras d'um devoto das minhas relações !

Mais tranquillo, passada essa primeira agitação, que não é fácil dominar, perguntei a mim mesmo :

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Quem seria o feliz mortal, de tão fino gosto, que ha mais de cem annos mandou edificar este Éden ?

Nestas conjecturas me demorei. E, então, vi o desfilar do periodo áureo do reinado de D. José I! Entre todas as figuras gradas e tafues, a que mais se salientava era a do Marquez de Pombal. De- certo elle teria ido alli rever-se no resultado da sua iniciativa, pois, como é sabido, foi o grande esta- dista quem, nomeado do século xviii, fez reviver en- tre nós, com melhoramentos importantes, a cerâmi- ca. A breve trecho, tão feliz como os que haviam des- fructado a festa inaugural talvez estava eu agora; e, identificado com o meio, julguei-me transportado áquella época, e todo o deslumbramento me per- tencia, era meu e para mim, para me distrahir da lucta continua em que me encontro desde que desperto, logo de manhã, a mór parte das vezes, sem que o somno terminado tenha reparado, sequer, as menores contrariedades do dia anterior, para me separar do mundo banal e mesquinho, para me fazer esquecer tudo e viver algumas horas em absolutas cogitações, em que o meu semelhante de hoje desapparece, para vêr o que os homens de outras eras genialmente produziram !

Nesta febre de ideias, vi toda a elaboração da ta- refa : O projecto, a largos traços, em grandes folhas

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de papel, e toda a actividade de um homem que manda, e de muitos outros que lhe obedecem. Al- vaneos construem o casco architectonico, que, pouco a pouco, cresce sobre os alicerces ; a pedra, o ti- jolo, o aviamento, tudo se me representa num bu- licio em que a ausência absoluta de rumor contrasta com a nitidez dos movimentos, como se a minha observação se verificasse atravez de uma espessa muralha de limpido cristal.

Ao mesmo tempo, todo o afan d'uma dúzia de homens que, dentro de muros, debaixo de telheiros, manipulam o barro, dosejam-n'o, apuram-n'o, cal- cam-n'o, e cortam-n'o por uma bitola ; da mesma espessura, os quadrados succedem-se, estendidos em camadas sobrepostas, como pequenas pedras de crescidos castellos. E assim se conservam du- rante alguns dias debaixo de telha, pois que a en- xuga é feita á sombra.

Sêcca a pasta, e mettida no forno, a tomar a pri- meira cozedura, está completada a parte mais rude da manufactura do azulejo.

Depois, os quadrados são banhados no esmalte,, de modo que este lhes não cubra mais do que a face destinada á pintura ; e, das mãos do artífice, passa ás mãos do artista.

Vimos, então, collocar unidamente os ladrilhos so- bre pranchetas, conforme o tamanho do trecho a

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decorar, segunda e difficil phase por que passa o azulejo, a pintura sobre o esmalte em crú.

E' como que aguarellar sobre uma camada de farinha húmida, camada que se desaggrega, ao ser tocada pelo pincel, quando o seu manejador não é hábil e expedito.

Finda a pintura, os azulejos são collocados mais uma vez no forno, e submettidos a elevada tempe- ratura ; e eis o grande elemento a collaborar com o pintor que, ancioso, espera o imprevisto resul- tado de toda a larga trabalheira, que, quando o fogo não quer, é totalmente perdida !

A phantasia não me deixa reflectir por muito tempo no mesmo ponto ! Agora, estou vendo os azulejos, apparecendo nos seus definitivos logares, perfeitamente coloridos, brilhantes e frescos, como espelhos orvalhados. E, ao mesmo tempo, um ho- mem alto, sêcco, typo accentuado d'um pormguez de fina raça, diligente, o mesmo que me tinha ap- parecido a iniciar a tarefa, com o projecto de tão interessante obra, dirige a sua conclusão, que, ao terminar, me parece posta de um jacto nesse en- cantador recinto !

Súbito, como numa transformação theatral, vi todo o festim da inauguração: Donas e casquilhas, senhores e arrebicados alfenins. Umas e outros, com ademanes galantes, cortejavam-se, num marulhar

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de quentes attractivos, como a preparar um abraço ao jogo da cabra-cega, ou no confuso e estreito cami- nho d'um labyrintho; e, se não dançavam o hin-dum em moda, quebrando-se lascivamente, se as damas não tufavam as saias com os delicados dedos, e em graciosas mesuras, partindo a cinta, não cadencia- vam um minuete, ao som da gemedora espineta, era porque o não permittiam a pragmática e o lo- gar. Mas pautavam os passos, deixando nas restri- ctas pegadas signaes dos talões doirados, e pro- mettendo nos languidos olhares perfumadas gen- tilezas.

Essas encantadoras e artísticas mulheres do sé- culo xvni estavam alli chamando a attenção com provocadoras verdades e fingidos pigarros, atravez de lenços, por cujas rendas deixavam ver os lábios, pedindo amor, espargindo aromática seducção !

Liberto d'essa abstracção sonhadora, em que a imaginação admira e os olhos cegam, passei á rea- lidade, em que os olhos vêem e a imaginação des- cança.

Reconduzido á fachada da casa, vi que ella não prepara para o que se passa no jardim, entre flo- res e arbustos, sob altaneiras e copadas arvores, que põem sombras desordenadas nos múltiplos pla- nos da architectura.

Nada de vetusto, nem um pequeno elemento

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decorativo da suggestiva e delicada arte do século XVIII a denunciar o que vae pelo jardim !

Interessa transcrever aqui a obsequiosa noticia, junta a uma amável car- ta, que nos dirigiu o sr. Visconde de Castilho, dias depois da nos- sa visita ao Paço do Lu- miar :

«A quinta dos Azulejos, cujos títulos primiti- vosnãoexistem, parece ter sido fundada na pri- me ir a metade do século xviu porumAntonio Collaço Torres, ourives em Lisboa, nascido nos primeiros annos d'esse sé- culo na freguezia de S. Julião, e, antes do terremoto, morador na rua Nova dos Ferros, filho de Luiz Collaço da Cruz, ouri- ves, e de Caterina Josepha de Torres, ambos de S. Julião; neto paterno de Domingos Collaço, ourives, de S. Lourenço de

G. 2 Bodas de Canná.

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Carnide, e de Maria da Cruz, da Conceição de Lisboa; neto materno de ManuelJorge, de Vianna do Alemtejo, e de Maria do Espirito Santo, da de Lisboa.

Em 1753, com o fundamento de ter agenciado enxoval, ou jóias, para a Rainha D. Mana Anna Victoria, foi António Col- laço Torres agraciado com o grau de Cavalleiro na Ordem de Christo.

A sua quinta do Paço do Lumiar, denominada dos Azule- jos, por causa dos lindíssimos e deslumbrantes azulejos, uns da celebre fabrica do Rato, outros de pincel estrangeiro, mas todos de primeira ordem, era muito fallada e apreciada; muita gente a ia visitar, inclusivamente as Pessoas Reaes. Em 3 de Novembro de 1/53, ahi foram el-Rei D. José e a Rainha D. Maria Anna, segundo se lia n'um padrão de azulejo que o dono mandou coUocar na frontaria. O azulejo dizia assim :

S. MAG."*^* fidelíssimas FELIZMENTE REINANTES

O S. D. JOZE E A RA N. S.

FIZERÁO A ESTA CASA A SUBLIME M.'^^ DE

SE SERVIREM d'eLLA EM 3 DE NOVEMBRO

DE 1753 E LHE REPETIRÃO A MESMA

HONRA COM TODA A FAMÍLIA REAL

V. R. T.

O AGRADECIMENTO DO SEU OBRIGADIS-

SIMO E HUMILISSIMO CREADO ANTÓ- NIO COLASSO TORRES P.'' SE ESTABELE CER NA DURAÇÃO DO MÁRMORE FEZ GRAVAR ESTA ME- MORIA EM 1760

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Parece ter sido filho de António Collaço Torres um An- tónio Collaço da Silva, droguista no largo de S. Julião ; era esse, nos principies do século xix, o proprietário e morador da quinta. Tinha de sua mulher dois filhos, nascidos nos úl- timos annos do século anterior : Maria Amália Collaço da Silva e João António Collaço da Silva.

Em i8o5, adoecendo gravissimamente o pequenino de cinco annos António Feliciano de Castilho, em consequência de uma queda, sua mãe levou-o a passar umas semanas de con- valescença na Quinta dos Azulejos, com cujos donos manti- nha estreitas relações de amizade, e tão estreitas, que por gracejo se tratavam por primos.

Toda essa villeggiatura infantil do moço Castilho vem pri- morosamente narrada no seu livro A chave do enigma.

Hoje, a. quinta é apenas um vasto jardim ; antigamente, com- municava com terras adjacentes, onde havia eira, a que se refere o Poeta. Depois de passar, por compra, a vários donos pertence hoje ao sr. Henrique Scholtz.»

(Extratos da obra Memorias de Castilho, por Júlio de Cas- tilho, tomo i).

A entrada é servida por dois portões, sendo o da esquerda o que conduz ao pateo, d'onde se passa immediatamente ao jardim, por uma pequena porta. Transposta esta passagem, em que se divide ao meio uma estreita rua, o espectador tem, imme- diatamente, a extranha impressão de estar no Oriente, sob a civilisação europeia do século xviii !

Essa rua (vide a primeira grapuraj ou galeria, ladeada por columnas, pilastras, bancos e alegre-

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tes, é rematada nos topos por cascatas com pequenos tanques de pedra, altos e amisulados, anichados em arcos de volta redonda, cujo perfil de faiança se liga á decoração azulejada até ao ponto mais elevado, terminando por clássicos vasos, também de faiança. Exceptuadas as estatuetas, a branco, e as com- posições de figuras, molduras marmoreadas e alle- gorias, nas paredes, bancos e canteiros, a tinta azul ou roxa-avinhada os azulejos são, aqui, do mesmo modo que nas demais ruas que contornam o jar- dim, rectangular, polychromos.

Nas quatro composições sacras, a azul, no muro da pequena porta por onde entrámos, que, alternam com egual numero de quadros profanos, lêem-se na parte inferior das respectivas molduras as seguin- tes legendas :

Joannes uiam Domino preparaiiit in eremo Agnum Dei demojistraiiit et illuminauit men- tes homimim

*

Premium sal-

tatricis mors est

Prophete.

Amb. Ib. 3.

i37

Accepit lesít panes

& ciim gt^atias

egij^et diftribiiit

discúbentibus.

Joan. cap. 6.

Nuptice factce

sunt in cana galilcece

aaqiiam vinum

fadam. Joanes, cap. ii.

(Vide g. 2)

#

O lado opposto compÕe-se de columnas e bancos isolados e alinhados, até os dois pórticos que lhe ficam nos extremos, e que dão passagem a duas ruas, que fazem ângulos rectos com a anterior. Es- tes pórticos, sólidos e elegantes, têem, sobre os arcos, vasos em gommos, no terço meeiro. As co- lumnas, cujos fustes octogonaes resaltam no terço baixo, com toros, talões e bases da mesma forma, têem capiteis, com folhagem pintada, e ábacos da ordem corinthia, sobre os quaes poisam vasos com plantas.

Intercalam com estas aprumadas peças os refe-

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ridos bancos de assentos e espaldar em semi-cir- culo, flanqueados por plintos redondos, encimados por vasos. Do estranho effeito d'estes diíFerentes motivos em conjuncto, de que seria difficil dar per- feita impressão sem auxilio da correspondente gra- vura, passamos á galeria que fica voltada ao nas- cente, por um dos pórticos de que acabei de fallar.

Percorrida até ao meio esta rua, que é, como a anterior, ladeada de idênticos motivos, topa -se com o mais rico e sumptuoso conjuncto de azulejos, guarnições de faiança em cheio, peças soltas, figu- ras, etc, em exhibição architectural. Fica central- mente coUocado, em relação a mesma galeria e, por conseguinte, ao meio do jardim, ponto onde se abre uma clareira arredondada, o que logar a desfructal-a mais commodamente.

Um grande pórtico de pilastras e molduras re- saltadas, de cerca de sete metros de altura, envolve uma cascata pedregosa e florida, com seu bojudo tanque ; tudo completo e desenvolvido em todos os seus detalhes, proporcionado, e delicadamente de- corado.

O fecho do arco tem uma carranca em relevo. Mais acima, lê-se a palavra EUROPA, dentro de um espaço fechado por moldura de forma oval, com sua allegoria figurada, tendo como remate na

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I

CO

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parte cimeira de todo o intablamento um busto, tamanho natural, banhado de esmake lácteo *.

Ladeiam este grandioso trecho architectural, nas paredes dos canteiros, pouco visíveis, devido ás sardinheiras que as encobrem, allegorias pintadas a azul, denominando-se as scenas, como recordam as designações rotuladas na parte inferior de cada uma das composições (sicj : Cigno, Andromeda, Per- seo^ Pleades, Icoro, Eco, Narciso, Alfeo, Aretuia, Liandro, Ero, Ariam, Scilla, e Procopo.

Defronta-se com este bello motivo outro, mais bello ainda, que reentra em hemicyclo na parte ajardinada, e cujo singular intablamento ideia de uma sanefa com oito regulares bolsos, pendente da continua cimalha que o termina. (Vide grapiu^a ter- ceira).

A base, um corrido banco, sustenta a columnata, cujos sete vãos são preenchidos, até meia altura dos fustes, pelos espaldares dos bancos, que têem ao centro, como emblemas, um dragão, ou, em grupo, a massa de Hercules e a pelle do leão, sua victima.

Entre o hemicyclo e o grande pórtico, sobre o solo, um lago para peixes, com seu repuxo, consti- tuindo todo o espaço um d'esses aprazíveis loga-

1 Os elementos que compõem a cabeça do presente capi- ulo são tirados do pórtico em questão.

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res, onde, outr'ora, as famílias passavam as tardes dos mezes calmosos, onde trocavam ideias, onde se lia e cabeceava ao som do continuo bater da agua caída das cascatas, dos complicados jogos d'agua, do zumbido dos insectos, do susurrar das doces abelhas.

Na rua opposta e parallela á que acabei de citar, a ornamentação é de um lado, sobre o muro ; mas, ainda assim, oíFerece muito interesse pelo que representam os azulejos, pela forma irregular dos bancos e canteiros, e das pílastras, sobre as quaes poisam estatuetas com esmalte lácteo.

Os azulejos, alem da figura humana, dos ornatos e das flores, exhíbem uma variada coUecção zooló- gica — animaes admiravelmente pintados a tinta avinhada, dentro de molduras pol3xhromas.

Entre a profusa bicharia, notam-se leões, águias, avestruzes, búfalos, veados, corças, cabras monte- zes, grandes e pequenos macacos, pegas, pavões, patos, papagaios, e ainda alguns mais de que não conheço os nomes.

Remata esta rua um pórtico semelhante aos dois da galeria que primeiramente esbocei, e, passado elle, continuam os azulejos revestindo a parede até uma pequena porta cortada no muro, que para a estreita azinhaga da Fonte Velha.

Ha ainda, noutros pontos, azulejos, onde se vêem

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pintadas figuras orientaes, que a fabrica do Rato tanto usou nas suas decorações.

Resumindo, direi que tudo é bom : azulejo, pe- ças relevadas, de applicação e soltas. Conservação, em geral, muito satisfatória. Desenho largo, cara- cterístico e correcto. Tintas frescas, vigorosas e transparentes : azul, verde, cor de vinho, amarello claro, e amarello quente. Esmalte brilhante e bem distribuído. Caracter da factura da Real Fabrica do Rato 1770 a 1780 (*).

Os quadros representam assumptos sacros, sce- nas ruraes e de interior, marinhas, galanteios, dif- ferindo os pintados a tinta cor de vinho dos pinta- dos a tinta azul, que evidentemente não são do mes- mo pincel, sendo a maior parte d'elles copias de gra- vuras, que, pelos trajos das figuras e alguns acces- sorios, reproduzem typos e coisas do Norte, razão talvez, por que lhes chamam azulejos hollandezes.

* # *

Visto tratar-se da Real Fabrica do Rato, apro- veito o ensejo para completar o estudo sobre o Dr.

^ Nalguns pontos, encontram-se, pintados somente ± azul, azulejos anteriores vinte annos, pelo menos, aos que estão dentro das referidas datas.

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Joaquim Rodrigues Milagres, que esbocei na Cera- mica Portuguesa, com dois documentos interes- santes, de que tive noticia depois de aquelle meu trabalho estar publicado, e que vêem augmen- tar os subsidios para a historia da cerâmica em Por- tugal. -*

O primeiro é um trecho de um artigo que o in- cansável escriptor e erudito archeologo, o sr. Dr. Sousa Viterbo, escreveu no Diário de Noticias de 3 de fevereiro de 1899, sob o titulo Cerâmica Por- tugue'{a, a propósito de um valioso documento pu- blicado e annotado pelo sr. D. José Pessanha, so- bre aquella fabrica, trecho em que o tenaz investi- gador dá conta da naturalidade e filiação do Dr. Milagres.

O segundo, que me foi indicado pelo esclarecido bibliophilo, o sr. Annibal Fernandes Thomaz, é uma representação dirigida a D. João VI, em 10 de setembro de 1817, pela Direcção da Real Fa- brica das Sedas e Obras de Aguas Livres, que vem publicada a pag. 386 da Memoria sobre cha- farizes^ de Velloso d'Andrade (Lisboa, i85i), e pela qual se prova que o Dr. Milagres dirigiu a fa- brica de louça do Rato, e que d'aqui sahiram pro- ductos cerâmicos de seu invento, o que era du- vidoso.

Seguem os documentos :

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«Quem era o doutor Milagres ? Eis o que pudemos averi- guar.

A' primeira vista suppozemos que elle seria, como José Bonifácio, algum naturalista, formado em philosophia, mas os documentos vieram-nos provar que a hypothese era in- fundada.

Joaquim Rodrigues Milagres tinha-se formado em Cânones na Universidade de Coimbra, pouco anteriormente a 1787, pois nesse anno habilitava-se elle para fazer leitura na Mesa do Desembargo do Paço, a fim de seguir a carreira judicial. Pelos papeis de habilitação se que elle, a esse tempo, mo- rava defronte da Moeda.

«Era natural de Villa Rica, Minas Geraes, no Brasil, sendo filho de Luiz Rodrigues Milagres e de Eufrásia Maria de Je- sus. Pelo lado paterno, era neto de António Rodrigues e de Paschoa Lourenço, e pelo lado materno de Francisco de Sousa Lima e Maria Gomes de Oliveira, todos naturaes do Brasil».

REPRESENTAÇÃO

"Senhor. = Em observância das Reaes Ordens de Vossa Magestade, tem esta Direcção da Real Fabrica das Sedas e Obras de Aguas Livres feito laborar debaixo da Admmistra- ção do Doutor Joaquim Rodrigues Milagres a Fabrica da louça do seu invento, e despendido com ella em dinheiro de contado a quantia de desassete contos trezentos e cincoenta e cinco mil quatro centos e cincoenta e um réis, que he o desem- bolso liquido, como se da demonstração numero hum, alem do valor da mobilia e utencilios da Fabrica da antiga Louça, que se mandarão entregar ao referido Administrador; e do producto das vendas, que todo elle tem retido, e dado conta de o haver empregado na mesma laboração. = "

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"Da sobredita quantia tem-se applicado um conto cento e noventa e três mil cento e cincoenta e um réis, para a Ajuda de custo de quatro centos mil réis annoaes ao Administra- dor ; e suppondo as contas deste três contos cento e doze mil oito centos e sessenta réis para reparos do Edifício. Foi authorisada a Direcção para tirar estas Addições do Cofre das Aguas Livres pelas Portarias do Governo, que sahem por copias numero dois, e numero três, de treze contos e qua- renta e nove mil quatro centos e quarenta réis, convertido na laboração da Louça, porque ainda Vossa Magestade não determinou de donde deve sahir. Tem-se também tirado este dinheiro do mesmo Cofre, nem havia outro a que podesse recorrer-se, sendo impossivel distrahir quantia alguma da Real Fabrica das Sedas, que não seja para o seu próprio cus- teamento pela atenuação em que existe ; mas ainda se acha em suspenso, e escripturação interina, porque sem ordem de Vossa Magestade não pode passar a credito effectivo daquelle Cofre. = "

"E porque a Direcção deseja conformar-se em tudo ás Reaes Ordens, e evitar o embaraço que resulta á escriptura- ção e regularidade das contas, de se continuar este methodo de tirar dinheiro em suspenso. = "

"Parece á Direcção, que Vossa Magestade Haja por bem authorisa-la para fazer lançar em credito effectivo ao Cofre das Aguas Livres, não a referida somma dispendida, mas também as mais que se forem dispendendo com a Fabrica da Louça; ou Determinar-lhe donde deve sahir esta despeza".

"Vossa Magestade resolverá o que for do seu Real Agrado. = Lisboa dez de Setembro de mil oito centos e desasseie. = Cypriano Ribeiro Freire Presidente. = José António de Sá. = José Accurcio das Neves.= José Barbosa d'Amorim.="

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Permitta-se-me ainda uma observação. No allu- dido artigo, pergunta o sr. Dr. Viterbo :

«Poria, acaso, o Dr. Milagres alguma marca nos seus tra- balhos, por meio da qual se distinguissem dos da Fabrica do Rato ? Eis um problema que conviria apurar, e para o escla- recimento do qual convidamos a boa vontade e a pericia dos ceramistas portuguezes».

A interrogação do sr. Dr. Sousa Viterbo está agora respondida na Cerainica Portuguesa, onde, de pag. 70 a 73, trato do Dr. Milagres, reproduzindo, no Diccionario de Marcas, sob os números 233, 234, 235 e 236, as que fundadamente attribuo áquelle ceramista.

DEPOIS do auctorisado parecer do sr. António Arroyo, publicado na imprensa, pouco pode- rei eu indicar sobre a melhor maneira de resolver tão diíficil problema, como o que se relaciona com a cooperativa escolar em Sacavém.

No entanto, para corresponder ao amável convite do Século, direi _ o que sei sobre o assumpto, e particularmente sobre a cerâ- mica, visto haver-me sido indi- cado este ramo industrial, e ainda por me parecer um dos que mais se coadunam com a Índole do ar- tífice portuguez.

Pretende-se, se

IO

\

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bem comprehendo a ideia inicial do sr. Anselmo Braamcamp Freire, crear na próxima aldeia um meio technico e, tanto quanto possível, artístico, para desenvolver as aptidões dos operários da localidade e encaminhar de seu principio os obreiros futuros.

A ideia é boa, e o local magnifico, por mais de uma razão. Sacavém, alem de ter a vantagem de estar a dois passos da capital, é, ha muito, um cen- tro industrial de nomeada.

Actualmente, tem o grande movimento que lhe a Real Fabrica de Louça e Azulejos, que, no género, é a mais importante do paiz, com raizes de cincoenta e sete annos. A tradição da estampa- ria das chitas, em que foi celebre, contribue tam- bém para aquella nomeada.

Os alicerces não podem ser melhores para edi- ficar a cooperativa escolar ; mas falta, segundo se diz, o material para tão complexo monumento, fer- ramentas, machinas e mais utensílios, e a creação de um museu onde se encontrem, de preferencia, moldes inspirados ou calcados nos nossos mais característicos typos de arte, ou da arte acclimada ao nosso paiz e á nossa maneira de viver, com re- lativa superioridade, e onde, alem da arte culta, esteja representada a arte popular, aquella em que o progresso não tenha posto o dedo, e que tão rica é em Portugal, no vasilhame de serviço caseiro.

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Depende o ensino industrial de providencias que estão descuradas no paiz ; e o que é mais para re- parar, é que taes lacunas foram menos sensíveis, do que o são presentemente.

Se assim não fosse, a cooperativa teria agora onde orientar-se, o que seria de grande importân- cia para a realisação do seu objectivo.

São ellas : a falta de um museu industrial, como o que esteve installado no edifício dos Jeronymos (Belém), que imprudentemente foi desbaratado, quando da reforma do sr. Elvino de Brito, que Deus haja, e como o que ainda se encontra no Porto, por ter escapado ás providencias do alludido ministro, graças aos esforços do seu director, o sr, Joaquim de Vasconcellos ; o caracter que tomaram as escolas industriaes, organisadas por António Au- gusto de Aguiar e pelo grande Emygdio Navarro, e que, em vez de servirem o ensino technico dos diffe- rentes officios mechanicos, estão actualmente, com poucas excepções, transformadas em lyceus parciaes, erro (creio bem) devido a circumstancias alheias á vontade do seu inspector ; e a falta de uma aula de arte decorativa, que ha muito devia contar-se nas Academias de Bellas-Artes de Lisboa e Porto, falta que não pôde admittir-se na época em que vivemos, pois que d'esta base fundamental parte todo o orna- mento que se applica á cerâmica, com que se enri-

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quecem as peças de metal, que decora as madeiras e que enfeita outros materiaes de que se fazem tan- tissimos objectos indispensáveis á vida das creaturas; aula onde se ensinasse de dia e á noite, por meio de elevada atmosphera de saber, a transcendência das formas, o equilibrio nas composições, a resultante da approximação das cores e das suas differentes grada- ções, onde, em resumo, se evidenciasse, com justa precisão, o accôrdo necessário entre os diversos elementos de uma obra, de modo a constituir um todo a um tempo agradável, por si próprio, e em harmonia com o meio a que se destinasse.

A' mingoa d'estes primordiaes elementos, que deviam estar estabelecidos, e tão accessiveis, ou mais, como o jornal de dez réis, de propaganda politica, estão irresolutos os mais interessados na organisação do referido estabelecimento.

Juntarei, pois, ás notas que deixo ligeiramente frisadas, indicações que julgo aproveitarem á co- operativa do arrabalde, ideias geraes, e algumas re- producções de formas da cerâmica nacional, que se me affiguram impeccaveis. .

No que diz respeito ao fabrico da louça ou utili- sação do barro, parece-me de toda a conveniência que a cooperativa se afaste completamente do gé- nero e processos da grande fabrica de Sacavém, porque, com a mesma Índole, nunca poderia com-

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petir com esse colosso, que, pela sua enorme pro- ducção e longa experiência, se acha estabelecido, não de modo a não permittir concorrência, tal como se encontra, mas a poder tornar mais acces- siveis os seus artigos, no caso de outrem lhe fazer estorvo.

Portanto, sem sair do campo da cerâmica, con- ciliando interesses e evitando prejuizos, que re- cairiam, decerto, sobre a cooperativa, deverá esta empregar o barro em productos totalmente diífe- rentes dos da fabrica real.

Produzir arte para o povo é, a meu ver, a mis- são da cooperativa escolar, fazendo renascer, neste ramo, o vasilhame e a esculptura popular, com absoluta ausência de formas.

O progresso (profiro quasi sempre esta palavra, receoso e sem convicção) tem acabado jt?rogressz- vamente com a nossa arte popular, e o mais extra- ordinário é que o desapparecimento se torna mais evidente á maneira que nos afastamos das mais recônditas villas de província para os centros de maior movimento e mais civilisados!

Dada esta aberração, o operário portuguez está actualmente privado, em muitos pontos do paiz e, sobretudo, na capital (com bellas formas) de uma jarra para as flores em dias festivos, de uma bilha para encher d'agua, de um púcaro, de uma almo-

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tolia, de uma vinagreira e de uma caçoila, que, ao ser posta sobre o altar da mesa, com a sopa fer- vida, á refeição da tarde, não represente apenas para elle, ao voltar do trabalho, o receptáculo do alimento compensador, mas lhe sirva também, com as suas linhas, uma boa impressão de estabilidade e de elegância força e arte qualidades impres- cindíveis nos objectes que acompanham o homem quotidianamente. Os olhos do trabalhador também comem. Nem de pão vive o homem. . .

A par d'estas e outras vasilhas, que devem le- vantar na tradicional roda oleira, e cujas incompa- ráveis formas faz bom humor vêl-as vivem na aptidão harmónica dos oleiros de Molellos, Villar de Nantes, Lordello, Prado, Beira, districtos de Aveiro e de Coimbra, e outras regiões, poderão fornecer, os futuros esculptores-barristas de Saca- vém, uma figura regularmente modelada, um pitto- resco boneco colorido, esmaltado ou exclusiva- mente da côr do barro, para collocar sobre a com- moda, que entretenha o espirito popular, recor- dando um facto glorioso da historia pátria, mos- trando um costume de uma distante província nossa ou, em grupos, representando a vida rural, a labu- tação do lagar, as notas mais características do lar portuguez.

Para a parte da olaria propriamente dita, deixei

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indicadas as origens a que de preferencia a coope- rativa tem de recorrer para constituir o museu de formas ; e, a mais d'este auxiliar, será profícuo que os seus dirigentes façam com que os seus alumnos visitem o Museu Ethnologico de Belém, onde estão expostas, profusamente, a origem e a filiação do al- ludido vasilhame.

Convém lembrar aqui que a região mais próxima, a produzir louça com caracter popular, é a do con- celho de Mafra. Das quarenta e oito officinas esta- belecidas em duas freguezias Mafra e Santo Izi- doro os productos chegam até Lisboa ; mas são raros os capazes de attingir o fim desejado.

Para a officina de esculptura popular, deverão os vindouros barristas de Sacavém inspirar-se no Museu das Janellas Verdes, Madre de Deus e pre- sépios da Estrella e da de Lisboa.

Para concluir, peço, reverente, licença para lem- brar á cooperativa escolar o que julgo da maior vantagem para o seu principio e seguro para a sua prosperidade : começar modestamente, não ter pressa de chegar, e ter, em alto grau, o culto da pro- fissão. Na França, na Inglaterra, na Allemanha, o operário não trabalha exclusivamente /»<3ra cumprir: tem amor ao trabalho. São esse culto e esse amor que não garantem a estas nações a existência, como lhes dão a sua grande força moral.

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N. B. No grupo da louça preta, na primeira pagina d'este capitulo, está uma bilha que não faz parte das peças de Villar de Nantes, como as res- tantes, nem tão pouco pôde ser considerada louça popular.

A referida bilha, com tampa e de faiança, é pro- ducto da Real Fabrica do Rato, da época do regente portuguez, Sebastião de Almeida (177 1), e recom- menda-se pela sua bella forma.

Do Século de io-v-igo8.

AARTENOFERRO

EM tudo ha arte dizia-me um amigo, alludindo á gravata e á maneira de a pôr ao pescoço. Que duvida !

Desde que á matéria prima, que a natureza creou, se deu uma forma, uma côr e se enriqueceu com um ornamento qualquer, logo a arte interveiu, não na gravata, complemento da vestimenta do homem, mas até no par de peúgas, quando ellas não representam apenas isoladores entre a pelle e o coiro das botas.

Levar-me-hia muito longe lembrar como a arte liga a gravata com as meias, as meias com as bo- tas e as botas com o chapéu, se o fim d'estas li- nhas fosse resenhar a parte económica da arte ; mas não é este precisamente o ponto onde desejo chegar. Em tudo ha arte, na mais absoluta exten- são da phrase !

A arte é a representação synthetica da verdade, como pôde traduzir também a maior e mais crassa mentira.

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Fazer pura arte é como falar elevada e pura- mente verdade ; dar impressão da verdade men- tindo, é também uma expressão de arte, incontesta- velmente.

A critica cognominou jt^míor da verdade o grande Velasquez ; e Eleonora Duse é tão grande artista mentindo, que faz esquecer com a sua mentirosa arte o que é absolutamente falso !

O mais fino metal, o fio de seda assetinado e branco, são elementos quasi indiíferentes ás crea- turas de eleição, quando a arte os não prefere para as suas obras, dando-lhes forma, burilando o oiro, tecendo e adamascando a seda; e de tal maneira é elevada a arte, que faz com que um lenço de chita meta a um canto um lenço de seda e com que o oiro seja supplantado pelo ferro !

E' da arte neste duro metal que desejo dar al- gumas noticias.

Tenho pelo ferro artístico mais admiração, que pelo oiro artisticamente trabalhado; paro com muito mais interesse defronte do sepulcro do Anaya, que me deteriam as ricas jóias do Shah da Pérsia, se as puzessem em frente dos meus olhos. Mas, para justificar a minha predilecção pela arte do ferro, não é preciso ir buscar essa obra-prima do ferro forjado, que se encontra na cathedral de Salamanca e outras que se admiram na cidade do Tormes,

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Grade, capella da charola, sec. XV (?) de Lisboa

como são a porta da biblio- theca da Universidade e as grades que guardam as ja- nellas do segundo pavimento da Casa das Conchas ; nem citar a maravilhosa escadaria da porta chamada Alta ou Coronerta, que, pelo lado do Evangelho, accesso á cathedral de Burgos ; nem lembrar as ricas e bem tra- balhadas verjas que fecham as capellas lateraes do mesmo templo ; nem recor- dar, de Toledo, a verja de San Juan de la Peni- tencia e, de tantos outros pontos da Hespanha, obras de ferro como as vedações das casas de Zaragoza, das sepulturas dos Reis Catholicos em Granada, da capella da cathedral de Cuenca, das cathedraes de Ávila e de Pamplona e as famosas reja e verjas da janella da casa de Pilatos, das capellas junto ao coro da cathedral, a que fecha a capella-mór, obras platerescas da Renascença, que se podem apreciar na maravilhosa Sevilha, sendo auctor da ultima Fr. Francisco de Salamanca, que teve como colla- boradores Diego de Udrabo, Juan de Lopez, o mestre Esteban e Juan de Cuvillana. Mesmo dentro do nosso paiz, em que estes

Trasfugueiro (?), sec. xv,

chaminé da sala dosCysnes,Paço de Cintra

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trabalhos não abundam, devido, em parte, ás extraor- dinárias catastrophes dos séculos xvi e xviii, que, a par do muito que destruíram, meteram debaixo da terra quasi tudo que Lisboa possuia de bello, e são mais modestos, não trocaria pela melhor jóia do Leitão a porta do baptistério da de Évora (fim do século XV), encimada pelo escudo dos duques de Ca- daval, nem pelos mais caros anéis do Canongia daria, se me pertencessem, os papagaios que enfei- tam algumas das sacadas da mesma cidade alem- tejana, nas ruas de Alconchel, da Sellaria e outras. Segundo a opinião do sr. dr. Gamara Manuel, a grade de Évora remonta a 1484, sendo então bispo da diocese D. AíFonso de Portugal. O escudo, tal como está na porta do baptistério, não foi usado pelos Portugaes, como também pelos Braganças, Alvares Pereira, Cadavaes e Vimiosos. No celebre e característico solar Agua de Peixes edificado no ultimo terço do século xvi (?), ha, sobre a verga da porta que accesso ao pateo, este mesmo brazão em azulejos do principio do século xvii, e dentro, ao cimo da escada principal, vê-se o mesmo escudo em mármore, trabalho de quando a casa. (Na Cerâ- mica Portugue\a^ alludo a estes brazÕes, quando descrevo o solar, noticia até então inédita). Ainda em Évora, nos Loyos, attribuido á casa Vimioso, se encontra o mesmo brazão.

iSg

Quantas vezes, admi- rando peque- nas peças, úteis e orna- mentaes : fer- rolhos, aldra- vas, abraça- deiras, fe- chos, tara- melas, fecha- duras, escu- detes, argo- las, chaves, pingentes, es- coras de ban- cos e de me- sas e um sem numero de

pregos histo- —— ^- -

riados que os Porta do celleiro, fim do sec. xv Bibliotheca de Évora

forjadores, os serralheiros, os cinzeladores e os la- vrantes da Edade Media, da Renascença e dos sé- culos xvn e xvni bateram, cortaram e moldaram, limaram, cinzelaram, burilaram, puliram, quantas vezes, repito, não os teria preferido a pedras pre- ciosas, se me dessem a escolher entre o immenso

i6o

valor d'essas raridades mine- rias e o incomparável mereci- mento do labor artístico dos homens na matéria rija do ferro !

E' assim a arte : o brilho de um diamante, a candura de uma esmeralda ou a suavidade de uma pérola, não teem fulgor nem attractivos para supplan- tar o ferro, como outra qual- Candelabro, Paço Real ^^gj. substancia rude, quando

de Villa Viçosa - u u-i-

maos hahiiíssimas, ao serviço

do génio, lhe dão encantadora forma, lhe dão deli- cadeza !

Além das peças de Évora, que notei, entre ou- tras, inda ha pouco alli existiam as grades do pa- vimento térreo da cadeia, na praça do Geraldo, de simples ornatos, trabalho tosco, mas pouco vulgar entre nós, visto marcar o século xv reinado de D. João 11.

Na mesma a que acima alludi, ainda alguns ferros forjados se nos deparam, tendo talvez mais caracter, como, por exemplo, uma suspensão lam- padaria do meado do século xvi, collocada ao lado esquerdo da nave central da egreja.

Também muito interessantes são as guarnições

i6i

da celebrada porta do celleiro da bibliotheca de Evora, estylo do ultimo período da arte gothica.

Mais ou menos, por todo o Alemtejo se encon- tram vestigios dos ferros brincados do século das conquistas, periodo da nossa maior riqueza e do ideal da arte, e d'ahi ao reinado de D. João V, se- gundo periodo faustoso e de requintada arte em Portugal.

Na escada principal do Paço de Villa Viçosa, ha um candelabro, cujo motivo predominante repre- senta um sat}TO. Em Elvas, como em Evora, havia algumas airosas sacadas de janellas, trabalho dos séculos XVI e xvn.

Neste género, um dos mais interessantes exem- plares existe no Museu Nacional de Bellas-Artes e foi encontrado em 1876 a quatro metros de pro- fundidade, ao do Arco Grande de S. Paulo, na- turalmente alli subterrado pelo terremoto de lyôS.

Em Vera Cruz, egreja do Santo Lenho, ha uma capellinha, cuja porta de ferro ostenta, entre os or- natos da parte cimeira, o escudo dos Almeidas so- bre a cruz de Malta e conjunctamente a seguinte inscripção : D. Lopo de Almeida. Anno de i'/2g.

São vulgares por todo o paiz, nos frontões, nas torres e campanários dos templos sagrados, as cru- zes e os cataventos rendilhados, com figuras e ani- maes, e, interiormente, nos mesmos edifícios, são

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variadíssimas, na forma e no desenho, attingindo muitas vezes enormes proporções, as suspensões lampadarias.

A que sustenta as lâmpadas que alumiam as ca- pellas de S. Jeronymo e Santa Maria de Belém, no monumental templo d'esta invocação, mede appro- ximadamente, entre as extremidades do seu braço, cinco metros, e é centralmente encimada pela sym- bolica esphera armilar de D. Manuel, ponto onde se liga á polé, íixada ao muro.

A da de Lisboa, d'onde pendem três lâmpa- das (como quasi todas, de forma triangular), é tam- bém de grande tamanho. Em geral, com seus orna- tos cobertos a oiro, estas peças, vistosas e decora- tivas, fabricaram-se do meado do século xvii até ao reinado de D. Maria I.

A grade mais apreciável pela sua antiguidade é sem duvida a que fecha uma das capellas affonsi- nas da charola da mesma Sé. De rudimentar lavor, mas raríssima, por documentar as obras da serra- lharia da primeira metade do século xv (?).

Nesta egreja, como na de Belém resto de maior numero são ainda visíveis alguns tocheiros de ferro forjado, do século xvii.

Do anterior, são o gradeamento que veda a ga- lilé da de Braga e o de Santa Cruz de Coim- bra, a que mais adeante alludo.

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Do século XVIII, as grades mais importantes são as da basílica de Mafra e as de S. Vicente de Fora, com applicaçÕes de bronze, as da capella do S. Jesus da Boa Sentença (com os attributos da pai- xão cobertos a oiro), no claustro da de Lisboa, e as da capella do sacrário na egreja da Encarnação, sendo estas dos últimos annos d'aquelle século.

Ferragem de uma arca, sec. xvii Collecçao do auctor

Mas, deixando a ornamentação presa e os espé- cimens da alfaya sacra dos templos religiosos e re-

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parando para os ferros de uso domestico, nota- remos, alem dos citados, o trasfogueiro (?) da sala dos cysnes do paço de Cintra, que guarnece a chaminé, e que, como arte, época e dimensão, não se envergonharia se o coUocassem ao dos landiers do Museu de Cluny. E' peça que deve al- cançar os últimos annos do século xv.

A mais característica brazeira que conheço, com a maneira accentuada dos trabalhos bragantinos do século XVI, pertence ao museu das Janellas Verdes.

Os serralheiros trasmontanos forjaram, e forjam ainda hoje, com o sabor da Edade Media, os tras- fogueiros, que, a um tempo, ornamentam, guardam do lume e amparam a lenha, e nos quaes os nos- sos antepassados assavam o lombo de porco, os cabritos, os leitões e outras peças da cultnaria por- tugueza. Encontram-se em muitos dos lares das co- zinhas das províncias do norte de Portugal estas guarnições, e tão vulgarmente, que d'ahi veiu de- certo o adagio :

Não ha dona sem escudeiro Nem fogo sem trasfogueiro.

O sr. Ramalho Ortigão tem uma d'estas peças, feitas em Bragança, nos últimos vinte annos, na chaminé da sua casa de jantar.

As tradições das ferrarias bragantinas e conim-

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Porta do baptistério, fim do sec. xv de Évora

bricenses, como a das grades de Santa Cruz, cujo auctor se chamou António Fernandes ; dos ferrei- ros bracarenses, dos ribatejanos, dos de Lisboa e outros pontos de Portugal, assignalaram-se, não

i6G

nas mesmas localidades, mas ainda noutras terras do nosso paiz.

Não ha muito que essa tradição se manifestou na cidade do Mondego. Coimbra apresentou em exposição, em 1906, peças delicadas e bem com- postas, como as que então reproduziu a Illustra- ção Portugue\a^ acompanhadas de um elucidativo e interessante artigo do sr. dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho.

E' certo que a educação dos auctores das referi- das obras, sem duvida a mais superiormente diri- gida no paiz, influiu preponderantemente para o êxito obtido ; mas noutras terras onde não ha mes- tres da envergadura do sr. António Augusto Gon- çalves, sob modestas direcções (como a minha), os serralheiros portuguezes affirmam de um modo evi- dente o engenho e habilidade dos nossos mestres d'outras épocas.

Em tudo ha arte ; e a arte prodigalisou uma boa parte do seu encanto nos braços de balanças. Nes- tas obras de ferro, foram mestres os serralheiros

Esphera armilar, sec. xvi Coimbra

>

^

Sepulcro do Anaya, sec. xvi Cathedral velha Salamanca

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do século XVIII e entre elles se luziram os portu- guezes.

Assim os classificamos com toda a propriedade, porque mestres podem elaborar instrumentos tão delicados e tão precisos, como os que servem para diíferenciar pesos minimos dos productos de pharmacia, do oiro e das pedras preciosas.

As balanças de mais apurado acabamento e as mais ricas, artisticamente fallando, eram as desti- nadas ás boticas, ás joalharias, e aos estanques ou lojas de capella, para pesarem o rapé que os nos- sos viciosos avós cheiravam e o retroz com que suas mulheres bordavam.

Scientificamente, a physica tem modificado mais ou menos a balança antiga e, pouco a pouco, creado novos modelos, no sentido da simplificação ; mas, ao passo que o progresso mechanico lhes abrevia a construcção e facilita a maneira de pesar, a de- coração, parte agradável d'esses instrumentos, vae desapparecendo, para ficar somente o objecto, útil, sem duvida, mas apparentemente insípido.

Nos seus variados systemas, encontram-se as ba- lanças propriamente ditas (as que se fundam no principio da alavanca): Ordinária, Romana, Deci- mal, ou de Qiiintien, de Roberval e Hjdrostatica, a destinada á medição das forças magnéticas e elé- ctricas, que, entre outras denominações, é conhe-

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cida por balança de Coulomb, Aerostatica (baros- copio). Elástica (dfnamometro)^ etc.

Arte, a tenho encontrado nos typos chama- dos Ordinária e Romana.

As seis peças que as gravuras reproduzem, cons- tituem dois terços de uma collecção que me per- tence — pequena no numero, mas rara na qualidade dos exemplares, de differentes procedências, na maioria portuguezes.

Attribuo parte a uma antiga serralharia, que ainda hoje trabalha em Lisboa, e de que ha noticia exis- tir, no mesmo local, no meado do século xvni.

Refiro-me á officina do Romão, ás Cruzes da Sé.

O mais remoto dos seus donos ou mestres é um tal Romão, que dizem ter morrido com io3 annos e que deu o nome á celebre officina. D'este, não sei se como representante da família, se como con- tinuador do supposto fundador, a casa passou para Nicolau António Fernandes, natural da villa de Oleiros, ahi pelo segundo terço do século xviii. Fernandes falleceu em 1848, deixando três filhos: Domingos António Fernandes, An- Q

tonio Joaquim Fernandes, que foi ^|

e António Romão.

Os netos de Nicolau, João An- tónio Fernandes e Romão António

Rrazcira, sec. xv. Museu Nacional de Bellas-Artes Lisboa

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Fernandes, são os actuaes proprietários e gerentes da tradicional ferraria.

A não ser d'estes, não posso oíferecer aos leito- res, de outros fabricantes, senão poucas e ligeiras indicações, e, no entanto, fácil é comprehender que não deve ter sido única em Lisboa a serralha- ria do Romão, como outro tanto se deve ter pas- sado noutros pontos do paiz, isto é, que, se por- ventura os productos d'esta officina chegaram, mais ou menos, a todas as províncias do continente, ás ilhas e ao Brasil, a razão não foi, em absoluto, a falta de outros productores congéneres.

Assim é que, entre a grande quantidade de bra- ços, marcados e não marcados, do Romão, tenho encontrado productos d'outros fabricantes, com typo accentuado de industria nossa, alguns talvez de José Rodrigues, hábil serralheiro do século xviii, de quem tratarei no fecho d'esta noticia ; mas a maior parte sem authenticação, como succede com as obras dos primeiros tempos da officina da Sé.

Não tirei apontamentos de todas as balanças marcadas, porque nenhuma d'ellas tinha nos seus braços interesse artístico e porque procurávamos exclusivamente os ferros do Romão.

Ainda assim, tenho notas de dois braços, com ini- ciaes do auctor e data da producção. O mais an-

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Reja da casa de Pilatos, sec. XVI Sevilha

tigo vi-o em lòòò no mer- cado de Évora, tendo em uma das faces : I MR B 1684. O outro está á venda ha bastantes annos no mer- cado de S. Bento, em Lis- boa : P F 1756.

Qualquer d'estes bra- ços, pelo seu aspecto, não indica ter mais de 5o a 60 annos. Friso este ponto, por dois motivos : pri- meiro, para pôr de sobre- aviso quem tenha de ava- liar a edade destes ferros,

apenas pela sua apparencia ; segundo, para lembrar que, do século xvii até ha bem poucos annos, as- semelham-se muito os braços de cruz feitos em Portugal.

Nalgumas mercearias, talhos e mais estabeleci- mentos da capital e provincias do reino, que ven- dem a peso, encontram-se ainda bons exemplares, que as officinas do Romão forneceram aos seus antigos freguezes ; alguns (raros) datados de 177.-. e muitos outros marcados : Romão & Comp.^. Ci- tarei a perfumaria dos Mendonças, a mercearia da calçada do Combro, 3i, que pertenceu ao pae d'es-

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tes commerciantes ; talho n.° 5, rua Larga de S. Roque, com a data 1843 ; talhos a S. Paulo (balan- ças de balcão, de 20 a 3o pollegadas), a botica da Chamusca, etc; e, em poder de particulares, os que pertencem aos srs. drs. Fidelio de Freitas Branco e João Luiz da Fonseca.

Também se vêem, nos armazéns que vendem por grosso, as de taras de madeira, suspensas por cor- rentes ou cordas, que pendem de cabeças de dois ganchos, conhecidas por balanças quin- taleiras ou de arrobar.

Foi na officina do Romão que pela primeira vez entre nós (i85o) se fabri- cou a balança decimal, tomando a di- reita, como construcção e solidez no fa- brico, aos eguaes productos estrangei- ros; como foi alli sempre e em primeiro logar que se obstou á concorrência, não d'aquelle, como d'outros typos vin- dos de fora.

Hoje mesmo, é a mais importante . casa, no género, de todo o paiz ; occupa um pessoal de vinte operá- rios e é ella que produz as poucas Tocheiro, sec. xvni ^ balanças de grande preço, quando os extravagantes se lembram de fazer-lhe alguma encommenda artística.

■73

^^^ ^824, não se limitaram os fer- reiros das Cruzes da ao trabalho das balanças : fizeram também reló- gios de torre. O do velho templo de Lisboa, que tão perto do laboratório que o contruiu sôa as horas, tem no mostrador interno : Romão & Comp.^ o fe\ em Lx. no anuo de 1824.

Vi, não ha muito, a machina, que é de ferro e metal amarello, e o desenho de toda a fabrica, que os actuaes gerentes da referida ofíicina conservam. Dizem estes obsequiadores artistas que aporta de ferro principal da velha egreja dos alfacinhas, feita depois de lySS, é obra da sua ferraria. A collecção de que acima fallo, deve, a meu ver, classiíicar-se da maneira seguinte: Gravura 1 Braço de cruz, de fer- ro forjado, ultimo terço do século xvi. Alcovas (no fim vae a nomenclatura) da navalha central, cabeças do cutello, vi- gia do fiel e tornei ou argola superior, forma circular. O fiel é preso ao tra- vessão por dois parafusos, e por para- fusos também são unidas as hastes. Papagaios pela parte inferior, sendo a distancia do fim do sec. XVIII guardada por uma peça de metal ama- Evora

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rello, em forma de balaustre. Está privada dos re- guladores, que enroscavam nas espiraes que extre- mam o cutello, peças que serviam para conservar em perfeito equilíbrio o travessão e que deviam ser de metal amarello, torneadas, completando e deco- rando os referidos pontos.

São muito raros os exemplares d'esta época. Mede, de navalha a navalha, o'",64.

Gravura i Braço de cruz de ferro forjado, trabalho rendilhado, perfilado e concluído á lima. Primeira metade do século xvni ? E' o mais an- tigo braço que tenho visto e um dos mais bellos trabalhos da serralharia poraigueza : attribuo-o ao periodo áureo da dynastia dos Romãos.

A exuberância ornamental, em todos os seus deta- lhes, dá-nos o direito de o julgar uma peça especial.

Apesar dos maus tratos que levou, como o pro- vam a lingua do fiel, partida, e de estar picado da ferrugem, por pouco cuidado de limpeza, ainda se perfeitamente o carinho com que as mãos do artista trataram o mais insignificante dos seus de- talhes. A harmonia na factura foi de tal maneira observada, que não se percebe, á primeira investi- gação, se o tornei da coroa e as pequeníssimas pe- ças que embellezam o caparacho, foram feitas sim- plesmente á mão ou com o auxilio do torno ! To- das estas qualidades justificam a nossa presumpção.

175

Pôde mesmo tratar-se de um d'esses exames a que se submettiam os artífices no século xviii, quando passavam de officiaes para mestres.

Não ficaria por aqui a encarecer este admirável exemplar, se o competidor que se segue não fosse tão terrivel !

Ainda assim, classificado como producto de serralharia, como unicamente é, posso , ^ chamar-lhe de primeira ordem ! Medida en- tre as navalhas dos ganchos o™,29.

Gravura 3 Braço de cruz, ferro forjado, ornamentação relevada e burilada. Época ?

Não é somente um dos trabalhos de ser- ralharia dos mais completos e perfeitos; é também, attestado de um insigne artista cin- zelador, que coUaborou para o bello con- juncto d'esta obra-prima. Tem a singeleza das obras clássicas, no todo e, ao mesmo tempo, a graciosidade da perfumada deco- ração que enriqueceu delicadamente a arte da Cartuxa, franceza do ultimo terço do século xviii. ^^^- *v"'

O cinzel trabalhou com proficuidade e sem exagero as rosetas de folhagem, sobrepostas, que de- coram as cabeças do travessão e os ganchos ser- pentinos, que d'estas pendem. Nos demais pontos, foi o artista apparentemente sóbrio, manejando com virtuosidade admirável o buril. No fiel, onde não

Escudete de uma porta

Braços de balanças i, sec. xvi 6, sec. xviii 3, sec. xviii (?)

Braços de balanças 2, sec. xviii 5, 1810 4, sec. xvili

178

ha, quasi, espaço, pela sua agudeza, o burilador con- seguiu perfilal-o com filetes e abrir e modelar or- natos floridos ! Assim se repete com a mesma de- licadeza o ornamento, nas hastes, no caparacho, no centro do cutelo e nos motivos que terminam hori- zontalmente esta peça.

Não é fácil dizer a epocha em que foi feito. Não ha nelle um estylo caracterisado. As suas linhas geraes recordam o fim do século xvn, ou o estylo de Luiz XIV e, por vezes, me tem parecido docu- mento das repetições de est3dos anteriores, que se fizeram no reinado de Luiz Filippe, em França. Mede o'",24 '/a.

Gravura 4 Braço de cruz, ferro forjado, orna- mentação facetada. Segunda metade do século xvni?

Trabalho inglez, feito á lima. Não apresenta toda a perfeição da mão d'obra, porque a espessa ca- mada de tinta que o cobria completamente não está de todo tirada, razão por que a nitidez dos seus bem acabados perfis e rincões não realça com luzimento. Boas linhas, forte, sóbrio e relativa- mente delicado. Tem, ao centro do cutelo, a marca do fabricante :

SAM.!- FREEMAN— LONDON

Mede o™,57.

(N. B. No estabelecimento de alfaiate-para- menteiro do sr. Miguel Carneiro Pinto, na travessa

179

de Santa Justa, ha uma balança, cujo braço é da mesma procedência e género ; maior, mais rico e com doirados).

Gravura 5 Differe do antecedente apenas no tamanho, sendo este o mais pequeno braço que co- nheço da oíficina do Romão. Mede ©'",14.

Gravura 6 Braço de cruz, de ferro forjado, or- namentação facetada. Fim do século xvni ? Braço estrangeiro, typo inglez. Mede o'",2i.

Gravura 7 Mesmo trabalho, origem e época do anterior. Braço estrangeiro, sem navalhas nos extre- mos do cutelo, caparacho quadrangular. Mede o"*,! 3.

José Rodrigues foi insigne fabricante de balan- ças. A que está actualmente no edifício da Con- trastaria é exemplar perfeitíssimo e de uma sensi- bilidade extraordinária, chegando a accusar o peso de uma estampilha. Braço de cruz, de ferro forjado, com applicações, taras e correntes de metal ama- rello, medindo, entre as navalhas, cerca de ©'",90 e mais de um metro de corrente.

Supportada por uma columna d'este mesmo metal, suspende-se por meio de uma alavanca, para pesar.

Tem, a mais do nome de José Rodrigues, pri- mitivo constructor, a data em que este mestre a elaborou 1782 nomes e datas dos artifices que a concertaram em 1822 e 1857 respectivamente, José A. Haas e João Frederico Haas (sobrinho).

i8o

Parece-nos que, antes das «reformas, melhora- mentos e reparações» (assim diz o distico junto), não seria tão profusa a applicação de peças de latão, que hoje exhibe. Do lavor que se neste metal, espécie de gtiillochis, pôde deduzir-se que, se na primitiva, era tão guarnecida de peças amarellas, estas foram, se não todas, quasi todas, substituídas. Assim, os compensadores são de uma forma que nos parece estranha ao trabalho de José Rodrigues, como nos parece egualmente estranho o caparacho, hoje fora do seu devido e primitivo logar.

NOMENCLATURA

A, Balança ordinária, de alavanca, de cruz, etc. B, Cute- lo, travessão. C, Fiel, lingua, indicador. D, Cabeças. E, Logar dos reguladores ou compensadores. F, Navalhas. G, Ganchos. H, Tornei. I, Coroa. J, Haste. K. Al- cova (espaço onde entra a navalha central). L,' Caparacho. M Correntes ou cordas. N, Taras, pratos, conchas.

I8l

* # #

Do «.Livro dos Regimentos dos officios mecâni- cos da mui excellente e Sempre leal Cidade de Lis- boa reformados per ordenãça do Illustrissimo Se- nado delia pello Licenciado Duarte Nunes de Liam » em 1672, códice que se guarda no Archivo da Gamara Municipal de Lisboa, transcrevo o pream- bulo, e algumas disposições do capitulo x, que se refere ao <iOfficio dos ferreiros de Obra grossa e Delgada » .

Em consequência d'esta remodelação no modo- de-ser das corporações de artifices, accentuou-se, por esse tempo, o progresso das artes e officios, entre nós. Creio que foi esta (na essência, ao menos) a organisação que se manteve até á extincção da Casa dos Vinte e Qiiatro, com a implantação do constitucionalismo, estabelecendo-se então a des- ordem, a arbitrariedade, a anarchia, no aprendi- zado e no exercicio das artes e officios, até á ini- ciativa de António Augusto de Aguiar, no tocante ao ensino profissional, tentativa que, como noutro logar frisei, não tem dado tão profícuos resultados como seria para desejar não obstante a compe- tência e boa vontade dos dirigentes d'esse ramo de ensino.

l82

PREAMBULO

No mes de Janeiro de cada anno os offiçiaes do offiçio dos ferreiros assi de obra grossa como delgada se ajuntarão em húa casa q elles para ysso ordenarem, e os Juizes que en- tão acabão o escriuão do offiçio de seu cargo presente da- rão Juramento dos Sanctos Evangelhos a todos os que pre- sentes forem que bem e verdadeiramente sem ódio nem affeição dee cada sua voz a dous homes que aquelle anno hão de seruir de Juizes e examinadores do dito offiçio, e delles seraa offiçial de obras do mar e outro de obras da terra e sendo assi dado Juraméto aos ditos offiçiaes, os ditos Jui- zes cõ o dito escriuão se apartarão para cabo da dita casa onde terão posta húa mesa e aly perguntarão a cada dos ditos offiçiaes per si sob cargo do dito Juraméto que recebe- rão a quem dão sua voz para aquelle anno vindouro seruir de Juizes e examinadores do dito offiçio; e o que cada disser em segredo o escriuão o escreueraa e acabado assi de perguntar os ditos offiçiaes elles Juizes alimparão a pauta o dito escriuão e em outro papel poerão per letra aquelles dous offiçiaes que mais votos tiuerem para aquelle anno ser- uirem de Juizes e examinadores do dito offiçio, e para que não aja difFerenças entre os ferreiros de obra grossa e os de obra delgada acerca da eleição dos ditos Juizes anno a fa- rão na ribeira e outro na ferraria. E esta ordem se guardaraa sempre.

E o offiçial que sair por examinador anno não seruiraa o mesmo cargo dahi a três annos contados do dia em q aca- bar seu anno.

i83

Seguem-se 26 artigos, com responsabilidades, multas e castigos, por faltas dos examinandos ou dos examinadores, dos quaes aqui transcrevo os números : 4, 5, 20 e 23, para demonstrar quanto eram rigorosos os preceitos naquella época.

E todo o offiçial que se examinar quiser de obra do mar sa- ber aa fazer ferragem para bestas ^ e seu crauo^ tudo muy bem feito, e esta seraa a primeira peça de sua examinação.

Item. saberaa fazer grilandeo.

Item. huã Ancora de quintal e meo até dous quintaes.

Item. saberaa fazer huã gouernadura de nao bem feita e acabada.

Item. o offiçial que se quizer examinar de obra da terra hade saber muy bem caldear o ferro e aço para aquellas obras q delle ouuer de fazer e conhecer a natureza delle se he agro se doce para que conhecendo© lhe dee a calda segundo for necessário.

Item. saberá fazer muy bem toda a ferragem para bestas e crauo para ella, e esta seraa a primeira peça de seu exame.

Item. saberaa fazer machado alto de carpintr" da ri- beira e machado frageiro.

Item. saberaa fazer húa enxoo e martello de carpintr".

Item. saberaa fazer poodão e húa fouce e húa enxada e hu ferro darado.

' flM/a*. Instrumentos bellicos de arremessar pedras, ou de atirar settas. Cravo. Argola cravada no arco (?).

i84

E ao que assi for examinado na maneira sobredita e for hauido por hábil e pertencente pêra poer tenda lhe passarão sua carta de examinação assinada pelos examinadores e feita pelo escriuão do dito cargo. A qual leuarão aa camará para la ser vista e cõfirmada e se registrar no liuro em q as taes cartas se registrão.

20

It. os Juizes do dito offiçio terão cargo de trinta en trinta dias visitar as tendas dos offiçiaes e fazer correição o es- criuão de seu cargo. E assi todas as mais vezes que necessá- rio lhes parecer. E as obras que acharê que não são feitas como deuem as tomarão e leuarão aos almotaçes das exe- cuções para se fazer nisso o que for Justiça e se dar o cas- tigo ao offiçial conforme a culpa que lhe for achada. E esta diligencia farão sem ódio nem affeição nem otro algú modo ou espécie de maliçia. E os Juizes que nas ditas obras engano e falsidade acharem e a dissimularem per qualquer via que seia e não fizerem diligencia para se fazer a dita execução contra os culpados pagarão dez cruzados a metade para as obras da Cidade e a outra para quem os accusar.

23

E nenhu offiçial do dito offiçio seraa tam ousado q tome nem recolha em sua casa aprendiz nem obreiro que estiuer outro offiçial enquanto durar o tempo q o tal obreiro ou aprendiz for obrigado a estar seu amo, nem lhe falle nem mande fallar per outrem sob pena de qualquer q o contr» fizer pagar dous mil réis a metade pêra as obras da Cidade e a outra pêra quem o accusar, e o tal obreiro ou aprendiz tornara para casa de seu amo.

i85

Como é natural, não se allude nestes exames a obras de arte, pois a praxe, como se está vendo, somente obrigava á execução de ferramentas e objectos que as prescripções referem, isto no que respeita aos exames para officiaes. No entanto, desde o século xv até á extincção da Casa dos pinte e quatro^ vê-se, pelas grades, mais ou menos mo- numentaes, peças fixas na architectura e de appli- cação ao mobiliário, que ainda existem, escapadas á deterioração dos tempos, a catastrophes e ao vandalismo destruidor, que, nos exames para con- tramestres e mestre de officina, os objectos para tal selecção não podiam consistir unicamente em pe- ças de ferramenta, utensilios de lavoira, simples armas e rudes ferros para embarcações.

Corroboram esta deducção, peças avulsas de complicado ornamento artistico e de impeccavel acabamento, como o braço de balança que acima notei e outras com que temos topado, de differen- tes préstimos.

Nomes de mestres ferreiros, têem-nos apontado, em face de documentos, os srs. D. José Pessanha e dr. Sousa Viterbo, que, sua interessante mo- nographia «Serralheiros e Ferreiros», cita dezoito nomes, e que noutra monographia, egualmente va- liosa, «A Armaria em Portugal» Primeira e se- gunda serie, 1907, 1908, apresentadas á Academia

i86

Real das Sciencias de Lisboa nos falia de grande numero de artistas, a alguns dos quaes se devem certamente as verdadeiras obras-primas, no género, que ainda entre nós se encontram, no museu do Arsenal do Exercito e nalgumas collecções parti- culares.

Ferrolho de uma arca. Sec. xvi

Ind

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Prefacio

Parte I

Pag. Joaquim de Vasconcellos, Carolina Michaèlis de Vas-

concellos Évora 3

José Maria e Carlos Alberto Eça de Queiroz 25

A Duqueza de Palmella As Cozinhas Económicas. .. 35

António Arroyo 41

Compensações 43

Pedro Corrêa da Silva 49

De Arrayollos a Évora 55

Fialho d' Almeida 61

Assobios de Barro 71

João Chagas 81

Em Automóvel 93

Na Abertura de um Casino 107

Um Sino Gothico 1 13

Amor ? 118

Parte II

Arte applicada 121

Quinta dos Azulejos Paço do Lumiar i23

Ensino Profissional 147

A Arte no Ferro 1 55

Acabado de compor e imprimir

AOS 5 DE Abril de 1909,

EM Lisboa, na Imprensa

LiBANio da Silva

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Queiroz, José Da minha terra

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